Pequena explicação

Faz algum tempo que comecei a escrever  esquetes, publicando-as aqui sob a categoria À cléf (um nome autoexplicativo). Os títulos remetem aos nomes dos arquivos de Notepad (ou programa semelhante) nos quais rascunho os textos antes da publicação. Por mais que às vezes exista uma insinuação de uma trama (e nada impede que tramas se formem), tais escritos não visam, pelo menos por agora, nada maior. A idéia é que bastem por si mesmos. São uma forma de treinar a mão, de poder mostrar alguma produção enquanto não há nada mais extenso, além de de gerar um repositório a partir do qual outros textos (contos propriamente, ou até formatos maiores) talvez possam ser escritos. A inspiração vem das silhouettes que Joyce teria escrito antes de Dubliners.

Porém, no impulso, comecei a publicar aqui partes de o que no futuro há de ser uma novela ou um romance (trata-se dos textos nos quais, até essa explicação, figuram os personagens Sérgio e Lúcia, sendo que vários outros ainda serão apresentados). Para não gerar confusão, esses, que em alguns casos se assemelham às esquetes, terão por título o nome do personagem seguido da numeração em números romanos (e, em alguns casos, acho que os títulos não vão ter os nomes dos personagens). A categoria deles, naturalmente, tem de ser também diferente, é a Esdrúxulo e Lúgubre, que é o título de trabalho dessa história em progresso.

LÚCIA – III

— Olha, a maledicência é um hábito extremamente nocivo, especialmente quando se trata de pessoas. É um vício, uma doença da mente. Eu evito ao máximo falar sobre o Sérgio. Eu me separei dele, eu quero viver uma vida longe dele, da influência dele… Então uma das formas eficazes de garantir isso é não falar sobre ele. Mesmo porque nunca é só um pouco, nunca é algo sem maiores consequências: é sempre uma torrente e sempre é algo que reverbera por muito tempo, dentro da minha cabeça, depois que a conversa já acabou. Mas, já que o assunto é esse, indo de encontro a tudo que acabei de dizer, para colocar de uma forma simples e não mais voltar à questão, é o seguinte, o Sérgio é essencialmente ansioso. Ele não é essencialmente deprimido, a questão é mesmo a ansiedade. Lidar com as coisas em progresso, com uma quantidade vária de resultados, muitos deles provavelmente negativos, o deixa perto da inanição. Ele quer lidar sempre com o certo, com o garantido. E um jeito de fazer isso é abrir mão de tudo, não se arriscar, ficar inerte e ir aceitando todas as sucessivas derrotas, porque, afinal, dada a conduta escolhida, elas são certas, garantidas. Daí vem a depressão, claro, porque essa é uma vida deprimente. Deprimente, mas sem grandes mudanças, sem grandes arroubos. Ahn… Eu tentei, juro que tentei ajudá-lo, mas depende dele, só dele.

— Mas, como ele está agora?

— Olha, não sei…

— Você não tem curiosi-

— Ah, olha. Pronto, tá? Era o que eu tinha para falar. Você… Você me passa a garrafa, por favor? Brincou que eu vou gastar mais do que isso, eu tô de férias, ó, falando mal de gente… Falando de homem, ainda por cima. Temos assunto melhor, assuntos melhores, amiga. Opa, isso, brigada, sim, com espuma mesmo

SÉRGIO – VIII

— E bem, meu caro, não me subestime, eu tentei um punhado de coisas, juro, mas no fundo sempre volta pra isso, pra esse desencantamento do qual eu não consigo me livrar… Eu tentei acreditar em Jesus, é claro, não me subestime, eu tentei terapia, eu tomei anti-depressivos por um tempo, eu tentei, ahn, haha, eu tentei a esbórnia, né? Álcool e sexo. Eu, inclusive, me ferrei um tanto nessa de álcool e sexo… Tem um lado muito feio nisso, ahn, vários, vários lados muito feios… Mas na maior parte das vezes eu imagino catástrofes imensas, desgraças mesmo, e me sinto bem por nada disso ter acontecido, ou não ter acontecido ainda, pelo menos. Eu penso nas pessoas fudidas, grotescamente fudidas, e aí tento me sentir bem com essa mesmice… Isso ajudou muito, muito mesmo, por um tempo, ainda ajuda de vez em quando… Mas eu também penso se não seria melhor ser destruído de uma vez… Seria melhor, talvez… Do que essa destruição lenta, esse banho maria.

SÉRGIO – VII

— E bem… Esse desanimo, essa apatia sempre presente não é suficiente para me escusar de coisa nenhuma, nenhuma. Eu ainda tenho de dar conta de todas as obrigações… Tenho de dar conta de mim, das minhas coisas, do trabalho, de Úrsula. E tudo é tão entediante, tão esmagador, tão triste… Não triste-triste, é uma tristeza levinha, que eu acho ainda pior, como uma febrinha constante…

— Mas…

— E então é isso, e só isso…O tédio, a falta de vontade, um movimento mínimo que continua… Continua por pura inércia… O menor esforço, a lei do menor esforço… A mediocridade, ou pior, algo ainda aquém da mediocridade… É isso que gira o mundo, não é? Não é o amor, não é o dinheiro, é o tédio, a apatia, o desinteresse… A maior parte dos trabalhadores do mundo, dentro das mais várias classes sociais, é entediada, mortalmente entediada. E eu sou um deles, como qualquer um deles, como o funcionário público carimbando processos mecanicamente, o assalariado preenchendo formulários com a maior displicência, o médico que não se digna a erguer a vista e olhar na cara do paciente, o engenheiro que não confere os cálculos, o advogado que escreve mal… A mediocridade é um sonho. A média. Se eu fosse um trabalhador médio eu seria pelo menos, ahn, mediano. Aquém, aquém, na verdade estou muito aquém. Estamos, sem ofensa, estamos todos nós muito aquém. Olhe, olhe ao redor, estamos tocando tudo, tudo, mal e porcamente, o mundo segue, o mundo segue empurrado com a barriga, o mundo segue nas coxas. Eu via meus professores, meus pais, os colegas de trabalho dos meus pais e pensava que quando chegasse a minha vez seria diferente. Eu acreditei que seria diferente. Mas… Ahn, bem, não é não. É isso aí. E morria de raiva quando alguém dizia “ai, que vidinha mais ou menos”, mas agora eu sou um desses, agora cá estou, eu e minha vidinha mais ou menos.

PRÓSPERO7.TXT

Próspero então aprendeu com Sosumi a dizer que determinado texto — qualquer texto, não era exatamente uma questão de precisão — dizia mais por meio daquilo que não dizia do que por meio do que estava explícito; dito normalmente acompanhado por uma expressão facial que, na cabeça deles, demonstraria profunda reflexão.

Próspero então aprendeu com Sosumi a usar expressões faciais como recursos retóricos (o que, além de irritante, não funcionava).

HERCULANO1.TXT

Herculano decidiu tomar distância dos grandes nomes da literatura. Antigos, modernos, contemporâneos, tanto faz: distância. Lia agora apenas o que chamava de autores “descompromissados” e “despretensiosos”, mas mesmo assim com muita parcimônia: nunca mais de um livro ao mesmo tempo, nunca mais de vinte páginas por dia. A razão para tanto, confessou certa vez a amigos em torno de uma mesa de bar, foi algo que lhe acontecera em sonho. Nessa onírica experiência, Herculano, como aqueles que dizem ter experimentado o duvidoso fenômeno da projeção astral, podia ver a si mesmo dormindo, enquanto sua sensível inteligência incorpórea flutuava acima, próxima a teias de aranha no teto. O rapaz ficou uns instantes levemente abobalhado, contemplando a si mesmo desacordado, até que uma figura adentrou ao  quarto de dormir: um senhor de gestos lentos e andar arrastado, calvo, branco, vestindo um terno de flanela cinza ligeiramente puído. Para o crescente pânico de nosso herói, o senhor, que não era ninguém menos do que o grande escritor argentino Jorge Luís Borges, estava exclusivamente interessado na bunda de Herculano. Não nas nádegas, vejam bem, mas no reto. Enquanto o Herculano de corpo físico permanecia letargicamente inerte e o Herculano de ectoplasma, desesperado, tentava, em vão, interagir com a matéria, cuidou o mestre do fantástico de, gentilmente, com a ponta do dedo indicador da mão direita (enquanto separava um pouco as nádegas com os dedos da mão esquerda), introduzir lhe na via anal o Aleph. Não a primeira letra do alfabeto fenício materializada em algum substrato qualquer, não uma cópia de seu famoso conto (ou homônimo livro de contos), mas o Aleph ele mesmo: um ponto no espaço que contém todos outros pontos, simultaneamente, sem distorção, sobreposição ou confusão. Experiência única e estranhíssima, que fez com que o Herculano acordasse empapado de suor, com os olhos cheios de branco, gritando:

– Tira isso do meu cu, Borges!

PRÓSPERO6.TXT

Um pouco depois de nos conhecermos, Próspero se apaixonou por Sosumi. Ela era um ano mais velha e estava dois semestres na frente de nós, o que era alguma coisa, dado o deslumbre inato aos calouros. De acordo com Próspero, a menina era um gênio, valoração que não mudou depois, quando por alto, em uma conversa relacionada a outro assunto qualquer, ela confessou ter lido um só livro de Nietszche, o Ecce Homo, por ser o mais curto (com sério agravante de se tratar de uma edição da horrível Martin Claret), com o único objetivo de poder lançar algumas frases sobre o autor, parecendo verdadeiramente conhecê-lo, em debates travados no ambiente (chato, phony as it gets) da faculdade.

SÉRGIO – VI

— A minha filha, o nascimento da minha filha, não mudou nada, absolutamente nada no que se refere a todos esses problemas, ou sobre esse problema, já que pra mim é uma coisa só. O mundo, a existência: nada melhorou. Meu desencanto continua, mesmo eu sendo encantado por ela. Na verdade, piora um pouco, porque a minha filha, alguém que amo e a quem estarei pra sempre ligado, agora está também nesse mundo, nesse vórtice tedioso. Talvez ela não perceba agora, mas eventualmente, findas as ilusões da infância, a infância ela mesma ou uma infância tardia, como eu acho que foi o meu caso, não haverá como… Como fugir. Você, é…. O senhor, o senhor tem filhos?

— Não, eu…

— Uma coisa que eu descobri com isso de ter filhos, de ter a minha filha, é que o amor, quando é verdadeiro, tem uma propriedade estranha, por meio da qual as coisas se confundem. Os corpos se confundem, mas não de uma maneira sensorial, erótica, ou qualquer coisa assim, eu tô falando da minha filha, afinal. Para mim a existência de Úrsula, além da alegria finita que ela me propicia, significa que a área que eu tenho sujeita ao caos do mundo aumentou. Antes doíam as coisas que me aconteciam, ou que poderiam, a qualquer momento, me acontecer… Agora eu preocupo com o que acontece ou pode acontecer comigo e também com Úrsula. É como a superfície na qual eu tomo e posso tomar porrada tivesse aumentado. Com ela aqui, existindo com nós, eu me sinto ainda mais frágil.

SÉRGIO – V

— Tem também outra coisa, que acho que é normal, relativamente normal… Até recentemente, relativamente, até eu chegar nos vinte e poucos, eu passava a maior parte do meu tempo entretido com as coisas que existiam exclusivamente na minha cabeça. As pessoas assistem séries agora, né? Eu tinha umas três, quatro séries na minha cabeça, o tempo todo. Eu era o principal ator, o roteirista e o diretor de todas elas, e, bem, elas alcançavam todos os gêneros, do drama à pornografia. Sonhar acordado, é. E, bem, um dia parou, um dia eu deixei isso de lado, um dia eu acordei… E ter acordado… Normalmente isso seria considerado libertador, um passo rumo a alguma maturidade. Né? Acontece que eu acordei, tive uma crise de… Ahn, imanência… E então passei a achar tudo uma merda… Eu não me encanto com quase nada… Não, tem… Tem minha filha, tem a infância dela, pela a qual eu sou responsável, e é por conta disso que eu estou aqui, mas… Não deixa… Tudo… Tudo não deixa de ser uma merda por conta disso.

SÉRGIO – IV

— É… Às vezes, às vezes eu fico pensando, se é então como alguns dizem, você com certeza já viu, leu, gente defendendo isto, isto de que a individualidade é uma ilusão, de que o eu é uma ilusão. Um lance das religiões orientais, é, mas atualmente cê vê um tanto de cientista, neuro-não-sei-lá-o-que, defendendo isso também, de que não existe um eu, um verdadeiro eu, dentro da nossa cabeça. Essa idéia de que é impossível apontar dentro do funcionamento do cérebro uma parte que comande, que seja o guia. O fantasma na máquina. Não existe, não existiria… As várias partes do cérebro acabam criando essa ilusão, essa ilusão desse eu… A liberdade também não existiria, partes da nossa mente, ocultas de nós mesmos, decidiriam as coisas sozinhas, e então nós racionalizaríamos tudo… O motivo e a decisão, ambos falsos. Saca? Tá. Então é isso, então é assim. Não existe o indivíduo, é um engodo, é uma ilusão. Mas, ah, porra, que papo furado. As minhas contas vão continuar chegando para mim, com meu nome e CPF, na minha casa, mesmo a minha individualidade sendo supostamente uma ficção. Se eu deixar de pagar a pensão da minha filha quem vai preso? Eu, mesmo o eu não existindo. E, pra além disso, se eu não existo, se minha individualidade não existe, por que diabos eu continuo fazendo as coisas do mesmo jeito, repetindo os mesmos erros, afirmando-me por meio dessas mesmíssimas falhas. É uma ilusão então, mas, porra… Até onde uma ilusão dessas, da qual você não pode se livrar, é uma ilusão? Pra mim é concreto, absolutamente concreto. O contrário é papo furado.