Alice

Ao meio-dia na avenida,
Alice deseja
mais um sem número de árvores,
que recortem os céus
em triângulos ainda menores,
que reduzam a claridade
a fachos, e os quebrem
em cascatas
de pequenos focos.

Luz pontual, que lhe revele

o verde enervado de uma folha,
uma constelação de pólen,

e não o absurdo da cidade.

Belo Horizonte, junho de 2006.

(Na avenida João Pinheiro, esperando ônibus com Clarissa.)

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Descia para nosso tradicional ponto de encontro. Isabela estava abaixada, quase de cócoras, olhando para alguma coisa próxima ao meio fio. Disse ei antes de entrar em seu campo de vista, mas não tive resposta. Aproximei-me e vi o que ela contemplava. Um pombo morto, o crânio aparentemente vazio (era possível enxergar através de seus olhos), com o peito aberto, as penas cinzas, ossinhos afiados e pálidos pedaços de carne confundindo-se com uma malha que pulsava levemente: vermes de anelados corpinhos amarelos. Isabela me passou o cigarro e apoiou o cotovelo no joelho, o queixo na mão — os olhos permaneceram voltados para baixo. Fixei minha vista no cadáver do pássaro, tentando entender o que naquele pequeno objeto mórbido despertava tanto interesse em minha amiga. Quando lhe devolvi o cigarro, dei uns passos para trás e olhei para os lados, ela disse, respondendo o que eu não havia (expressamente) perguntado:

— Os vermes. Como não está completo sem os vermes. A necessária dualidade de todo o símbolo. A cor da caveira do tarô: rosa.

Eu disse unhum e então ela se levantou, sorrindo, dando boa tarde,  pedindo  notícias:  iniciando as conversas do dia depois desse brevíssimo prelúdio.

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— Assim que eu disse que não aguentava mais, ele disse que sim, que concordava, que era isso mesmo. Começou então a listar todos os problemas, dentro da concepção dele. Eram, exclusivamente, problemas meus. Eu teria estragado tudo, desde o início, por ter feito isso e aquilo, por ser assim e assada.

— E o que você disse?

— Só assenti. Não disse nada. Chega de explicações, chega de tanta atenção. Foi um ato de desapego total, sem a defesa de qualquer narrativa. Foi bom.

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Até alguns anos atrás ela costumava se esforçar para responder tudo no exato momento, o mais incisiva possível. Sempre no contra-ataque ligeiro, no riposte. Mais recentemente, porém, começara adotar técnica diversa: esperava o indisputável fim da fala alheia e então lançava ao interlocutor um olhar direto, calmo, sem nada dizer. Era como se forçasse as palavras recém proferidas a permanecerem suspensas no ar por instantes, intervalo no qual inevitavelmente se repetiriam nas mentes dos presentes, revelando seus defeitos, perdendo sua espontaneidade e força. Isabela então atacava, suave, metodicamente. Às vezes fazia pior, às vezes só perguntava:

— Essa é então a sua opinião? — o que, com uma resposta positiva da parte contrária, completava, felina, com um desinteressado — Pois bem.

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— É um hábito mental antigo, do qual eu tenho imensa dificuldade de me livrar. Um hábito bem cretino, na real,  que  entrega um pouco da minha sordidez. É que… Lidando com gente nova, assim que me sinto contrariada ou minimamente preterida, começo a listar, compulsivamente, todos os defeitos da pessoa, começando pelo mais fácil: mau gosto para livros, discos e roupas. Coisas que antes não tinham a menor importância, para que eu possa continuar me sentindo bem, passam a ser essenciais. Tudo muda para que eu possa continuar no meu lugar.