PEREIRA XIV

Ainda na dita Câmera de Descompressão, adentrando um pequeno cômodo, com o teto e todas as paredes pintadas de preto, iluminado apenas por pequenas lâmpadas púrpuras colocadas à altura dos rodapés, com um enorme alçapão no centro, Pereira não pôde deixar de se lembrar dos inferninhos que frequentava, dos quais voltava com a roupa toda fedendo a cigarro, depois de ter pago um valor absurdo para conseguir ficar bêbado e lidar com sua ansiedade social.

O Sr. Hildebrando, que, caturra, lamentava-se desarticuladamente, em provocado por Aeris, queixou-se forma expressa:

— Um tanto quanto mórbido, não?

A moça, agora com o macacão metalino purpurado pela luz, respondeu o senhor calmamente, com um sutil sorriso:

— Ahn, sim, o senhor está correto. Trabalhamos aqui exatamente com a ideia de morte e renascimento. Tudo alegórico, muito naturalmente. O primeiro estágio dentro da Associação, que é justamente esse no qual os senhores se encontram, inicia-se com uma espécie de rito no qual a pessoa é levada a lidar, tanto real quanto figuradamente, com aquilo que há de mais obscuro. O que os senhores encontrariam na escuridão mais profunda, no silêncio mais absoluto, na solidão plena? Estão prestes a descobrir.

— Ora, mas o que é isso, minha filha?

— Onde dá esse alçapão?

— Bem, como vocês poderão ver… — disse Aeris, adiantando-se e abrindo as pesadas portas da passagem subterrânea, o que fez com que um sopro tépido subisse rapidamente — temos aqui ótimos tanques de isolamento… Alguns os chamam de câmara de privação de sentidos, mas isso soa tão errado, tão, ahn… Punitivo. Nós tratamos pelo nome que os maiores entendedores usam, que é, como eu disse, tanque de isolamento. Ótimos. Ótimos e instalados em condições ideias. Ideais.

Os três desceram então por uma longa rampa, ligeiramente inclinada. O carpete no chão, extremamente felpudo, abafava todo o som produzido pelos passos. Os mesmos pequenos focos de luz púrpura junto ao chão iluminavam o caminho. Depois de fechar as grossas portas, que, assim como aquelas paredes, eram dotadas de isolamento acústico, Aeris tratou de explicar que o tanque de isolação é como uma grande banheira, totalmente fechada, na qual o sujeito flutua deitado e imóvel numa solução de água e sulfato de magnésio. Não há nenhuma luz, nenhum som e, graças à suspensão na solução salina, o tato e a própria sensação de peso são mitigados, ficando quase imperceptíveis.

— A ideia — prosseguiu Aeris, fazendo com as mãos um amplo círculo em volta do próprio rosto — é gerar um buraco negro psicofísico, uma queda livre psicológica, na qual as realidades internas podem ser exploradas de uma forma completamente nova e livre.

Ao final da rampa, encontraram um segundo par de portas e depois dele, um pequeno vestíbulo, também todo negro, ao fundo do qual se viam três portais cujas entradas eram bloqueadas apenas por cortinas de tiras de um tecido grosso. No canto havia um homem, com os característicos trajes vermelhos do quarto posto da Associação, sentado diante de um terminal no qual brilhavam pequenos caracteres verdes sobre uma tela escura.

— Aqui, queridos, por meio desses controles, monitoramos tanto a temperatura do ar dentro do tanque quanto a temperatura da solução salina, a densidade dessa solução, entre outros parâmetros que nos são caros quando usamos os tanques de isolamento… — explicou Aeris, sussurrando, após um breve aceno de mão para o homem diante dos aparelhos.

— É… Minha, cara nós vamos entrar nesses tanques de isolamento, é isso? — disse o Sr. Hildebrando visivelmente ressabiado, mas também sussurrando, respeitosamente.

— Sim, meu caro, para que vocês entrem aqui na Associação é necessário que passem por uma sessão curta, de uma hora apenas, dentro do tanque. Essa sessão tem uma função ritualística, iniciatória…

— É um batismo em solução salina, minha filha?

No que Aeris riu e seguiu explicando:

— É interessante a associação com o batismo, mas a água aqui tem uma função diferente. A sessão tem um duplo condão, o de funcionar como um preparativo para os trabalhos que vocês farão aqui, afastando-os das experiências mundanas, que já ficaram lá fora, e o de colocar os senhores diante do escuro, da ausência, da solidão…

— É… Mas, olha… Escuro, ausência, solidão? Não foi para isso que eu vim aqui, minha filha, ai, foi o contrário. O com-ple-to o-pos-to.

— Bem, Sr. Hildebrando, talvez o senhor precise esperar até o final da explicação para que possa formar um juízo de valor. Os materialistas, que confundem a alma com a mente e então a mente com o cérebro, defendem que estamos limitados pelos nossos sentidos, pelos sinais e estímulos conhecidos, de forma que quando estamos no tanque de isolamento, profundamente relaxados, os lugares e pessoas com os quais nos interagimos, que aparecem depois de algum tempo sem os estímulos aos quais normalmente são submetidos os nossos sentidos, são criações de nossa imaginação, como num sonho…

— Hmmm… — piscando em demasia.

— Para esses tipos, o tanque de isolamento é utilizado como ferramenta para o relaxamento e para meditação. Verdade seja dita, é realmente uma maravilhosa ferramenta para o relaxamento e para a meditação. Mas, por que subutilizar a ferramenta? Não nos enganemos, a experiência mostra que nossa mente é capaz de se conectar à fontes e sinais cuja a ciência contemporânea não é capaz de explicar. É possível obtermos informações mesmo quando isolados de todas as conhecidas fontes de estímulo. É possível a transferência de pensamentos com outros seres… Humanos e não humanos…

Palavras que fizeram logo o Sr. Hildebrando repetidamente balançar a cabeça para cima e para baixo em afirmação e se desculpar:

— É que todo esse escuro, isso de ser subterrâneo, esse ar meio abafado, a coisa de ficar fechado, selado mesmo, sabe? De início, assim, pareceu-me ruim…

— Os antigos gregos desciam até as profundezas da terra, adentrando cavernas em busca de conhecimentos místicos… Os alquimistas associam a primeira fase do seu trabalho a essa mesma ausência de luz, essa escuridão, um estado de confusão, de melancolia, de questionamentos, a partir do qual surgem respostas, surge um caminho… Aqueles que desejam progredir dentro das fileiras da Associação, ultrapassando o primeiro posto, dentre outros processos, passam por longas sessões diárias, por quarenta dias contínuos, até chegarem ao segundo posto. Vocês, meus caros, precisam apenas de uma sessão.

Acenando convidativamente, Aeris seguiu rumo a um dos três portais sem portas. O homem de vermelho, falando muito baixinho, assegurou que os tanques já estavam nas condições desejadas. A moça indicou a Pereira e Hildebrando o banheiro logo depois do portal, à direita, onde eles deveriam cuidar de suas necessidades e tomar uma ducha antes de entrarem no tanque. Deveriam ainda repetir a ducha ao final, para remover qualquer resquício da solução salina de seus corpos. A cortina no portal impediria que os usuários do tanque fossem vistos, mas, para a segurança dos mais pudendos, havia um roupão estrategicamente posicionado. Logo após a porta do banheiro, via-se o tanque de isolamento, que parecia com um caixão, só que branco, brilhante e com as quinas arredondadas. Um caixão desenhando por gente da Apple. Aeris o abriu, revelando a imensa simplicidade do seu interior, lá estavam o líquido no qual se boia e um botão de emergência, mais nada. Em seguida, feito uma aeromoça gesticulando expressivamente ao explicar o funcionamento das máscaras de oxigênio, tratou de demonstrar, ainda que na vertical, como durante a flutuação no tanque as mãos deveriam ficar juntas, com os dedos entrelaçados, atrás da cabeça, os cotovelos imersos na solução. Para aqueles com algum receio de dormir durante a flutuação, Aeris demonstrou como deveria ser usado um pequeno travesseiro de espuma. Em seguida, orientou os homens como deveriam, uma vez dentro do tanque, concentrarem-se em suas respirações, inspirando e expirando lentamente.

Finda as explicações, cada um seguiu para sua ducha e em seguida para o tanque. Pereira em silêncio e o Sr. Hidelbrando, por mais ansioso que estivesse de experimentar o tanque, maldizendo baixinho a necessidade de mais uma vez trocar de roupas.

Uma vez sozinho, Pereira tirou seus trajes negros desajeitadamente e se pôs debaixo da ducha. Ficou com a cabeça baixa e os ombros caídos, respirando lentamente e se aproveitando do frescor da água.

– Ah, Cármen, as coisas que eu faço por você… – disse para si, com um amplo sorriso.

Dispensando o roupão, seguiu nu até ao tanque de isolamento. O receptáculo lhe pareceu um enorme útero de plástico. O fato de a solução salina ser completamente inodora não lhe surpreendeu tanto quanto o forte empuxo, que sentiu assim que colocou os pés dentro do tanque e foi lentamente abaixando, deitando-se até boiar imediatamente, sem a necessidade de nenhuma técnica de natação. Boiando, lembrou-se daqueles pequenos insetos que deslizam sobre a água, suspensos na tensão superficial do líquido. É assim que eles se sentem? Não, que eles ficam indo de um lado para o outro, frenéticos. Passados alguns minutos na escuridão — uma escuridão amigável, por opcional —, Pereira se lembrou de quando era criança e, armando vários cobertores, lençóis e travesseiros, brincava de cabaninha, ou quando, na casa de sua avó, enterrava-se debaixo de todas as almofadas que ficavam esparramadas sobre o tapete da sala de TV, ou ainda, quando experimentava a ideia de ter desaparecido, de não existir, escondido no armário da dispensa. Essa sensação de estar fora do mundo, separado, isolado, preencheu sua imaginação até que a calmaria do tanque foi subitamente interrompida por gorgolejantes ruídos estomacais. O incômodo de não ter comido nada desde o café da manhã lhe assaltou, fazendo com que sua barriga ecoasse pela câmara como um monstro. Pereira seguiu a lição de Aeris e se concentrou em sua respiração, ainda maravilhado com a flutuação e com aquele escuro impenetrável, até que seus sucos, membranas e músculos gástricos se acalmassem. Tal exercício de atenção potencializou os efeitos do tanque de isolamento. Findo os borborismos, sentiu-se no exato centro de um infinito mar de nada, estático e extático, congelado no espaço e no tempo. Continuamente blindado contra as experiências organolépticas, com a privação dos sentidos se estendo até à própria razão, começava então sua breve viagem alucinogênica. O mar de nada se transformou em um absurdamente quieto mar, material e imenso, cinza, espelhando um céu de um cinza ligeiramente mais claro. O horizonte plano em todas direções, trezentos e sessenta graus. Abandonado em um mar pacato. Em uma noite afável.

O aspecto gris daquele mar sonhando foi então se colorindo lentamente, a medida que um sol vermelho sangue começou a despontar na direção para a qual apontavam os pés de Pereira, espalhando camadas aquareladas de rosa e laranja a seu redor. Sem que houvesse uma fonte discernível, Pereira começou a escutar um longínquo planger de guitarra, imediatamente acompanhado pela pertubação das águas. Com a intensidade do som da guitarra – turvo, texturizado– progressivamente aumentando, as águas se agitaram mais, com elevações e depressões cada vez mais marcadas. O sol recém-nascido, de forma completamente antinatural, deslizou rapidamente para o zênite daquele céu, revelando-se então como a fonte do distorcido som de guitarra. Pairando sobre as águas, agora exatamente acima da cabeça de Pereira, o vermelho daquela esfera se abriu, como feixes de cabelo descortinando uma face, de forma que o objeto celeste não era mais o astro rei, mas a cabeça de Cármen, cuja fisionomia Pereira acabara de conhecer no vídeo introdutório da Associação, absurdamente enorme. A face ciclópica mirou Pereira nos olhos e fez que ia dizer algo, o que induziu arrepios no moço. Como num sonho delicioso que acaba subitamente antes do clímax, toda experiência se findou num só instante, quando, com um sonoro clique a porta do tanque se abriu antes que a fabulosa boca tivesse conseguido emitir qualquer som.

Embasbacado, com o coração acelerado, ele saiu atrapalhadamente da câmara, deixando um rastro de solução salina até o pequeno banheiro, onde se esfregou com vigor e rapidamente vestiu as vestes negras do primeiro grau da Associação, insatisfeito por não poder se confortar ali com a normalidade das próprias roupas. Teria sido realmente uma produção de sua imaginação ou, como queria Aeris, teria sido uma mensagem enviada pela própria Cármen, ou quiça, por uma inteligência não humana, preternatural? Ou, grande sacanice, seria o tanque uma caixa de Skinner para humanos, dotada de aparelhos que possibilitassem o envio de estímulos para quem estivesse lá dentro, supostamente isolado?

Adentrando o vestíbulo de outrora, Pereira tornou a encontrar Aeris e o Sr. Hildebrando, que estava em prantos. Pereira, desviando o olhar da face do velho, demorou a entender que chorava de alegria. O que ele viu?, perguntou-se em silêncio. Os borborigmos lhe atacaram mais uma vez. Buscou pelo mapa que era também cronograma e depois de conferi-lo, enquanto dobrava-o demoradamente em quatro partes, endereçou-se a Aeris:

— Minha cara, com licença, mas na sequência… É o almoço, correto?

*