Incigaz e Zandroso – I

PANTOMINA

O grande domo branco, de cerca de cinquenta metros de raio e quinze de altura, era sustentado por finos pilares que se arqueavam até o solo, em continuidade à curvatura do prédio, e por uma dúzia de grossas colunas fixas à sua base plana, remetendo vagamente às patas de um fantástico inseto gigante. Essa estrutura de suporte havia sido pintada com um tom de azul-marinho quase indistinguível do preto, de modo a desaparecer se justaposta ao céu escuro, sugerindo a um hipotético espectador noturno posicionado à distância a ilusão da cúpula flutuando a mais ou menos seis metros do chão, idêntica a um disco voador completamente estático.

O efeito era aumentado pela via que levava ao interior do domo, uma rampa levadiça que permanecia fechada a maior parte do tempo, conferindo um ar cerimonial às raras ocasiões em que era descida, e pelas fileiras de pequenas janelas, parecidas com as encontradas em aviões, que denunciavam a secção da falsa nave em quatro andares sucessivamente menos amplos.

Um estalido abrupto e metálico rompeu o silêncio da noite. 

A rampa abriu, movendo-se lentamente, em velocidade constante, até se baixar por completo. O seu descerrar era normalmente acompanhando pelo progressivo acender de lâmpadas que, além de projetarem feixes de luz cilíndricos, feito putativos propulsores, clareavam gradualmente a extensão das colunas, gerando a impressão de que o disco, depois de um tanto bom de flutuação imóvel, tivesse enfim pousado, fixando-se à superfície de nosso planeta com retráteis perninhas mecânicas.

As luzes, entretanto, não acenderam. A figura que surgiu, descendo lentamente, foi delineada somente pelo luar. Insólita era sua silhueta: um humanoide de cabeça grande e ovalada, com um manto sobre os ombros. Instantes depois, um alvo de um facho de luz vindo de dentro do domo, a criatura, já no chão, revelou-se humana: tratava-se de um homem de aparentemente quarenta anos, de pele clara, cabelo curto e barba raspada, vestido com uma justa túnica negra e uma capa vermelha, de gola levantada. Usava em volta da parte de trás da cabeça um estranho artefato prateado, assemelhado a uma enorme concha. Antes de seguir caminhando, virou-se para trás e, espremendo os olhos por conta da luz que lhe acertava as vistas, gritou para dentro do prédio hemisférico:

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zabumba ; estamos para sempre no 2151, indo da Nova Suíça para o Centro, numa tarde que corre macia, iluminada e limpa, estou para sempre falando mal de The Smiths, você está para sempre desenhando o a na bola no chão, com os pingos d’água que escorrem do seu guarda-chuva; estamos para sempre em praça pública, domingo de manhã, profanando as atribulações de São João na Ilha de Pátmos; estamos para sempre trêbados, no alto da cidade, digladiando com as inelutáveis modalidades do ser; estamos para sempre dançando Um bilhete para Didi num casebre circundado de névoas; estamos para sempre apostando corrida pelos poliedros da Justiça; estamos para sempre na Praça da Liberdade, circunspectos e indiferentes aos que nos oferecem libertinagens (Quais qu’é seu nome?); estamos para sempre esperando a banda subir ao palco; estamos para sempre na Boa Viagem; estamos para sempre argumentando contra totalitários do Ensino Médio; estamos para sempre grogues, improváveis, jogando futebol sob a chuva gelada; estamos para sempre entre a turba, contemplando a parábola do molotov; estamos para sempre tomando cerveja preta com gosto de mamilo; estamos para sempre entretidos com galinhas e raposas; estamos para sempre

Lúcia – IV

— Há sim todo esse absurdo, essa sordidez. Não importa quando você passa a perceber, é indiferente. Há, existe. Antes de ver isso você não é um abençoado, não é livre de qualquer mal, é só ignorante, inocente. A inocência não tem valor. As sombras, o falho, o errado, o ruim, tudo isso sempre existiu e, olha… Tudo isso vai continuar existindo, para sempre. Assim como sempre existiram as luzes, o acertado, o correto, o bom. É tão difícil aceitar essa… Ahn… Justaposição? E… Não seria exatamente essa justaposição que torna tudo, tipo, ahn, inteligível? Nunca existiu uma hora, um dia, um ano, uma era mais propícia para a existência. A existência é isso mesmo. Nunca existiu nada muito diferente do que agora, em termos de, ahn..Tá, historicamente existem mil diferenças, mas… Para a parte mais central da existência… Como é?… Existencialmente…

— Ah… — disse Joana distribuindo protetor solar sobre o colo — Ontologicamente?

— Exato, doida, ontologicamente. Ontologicamente nada nunca foi muito diferente de agora.Todos nós temos de aceitar o agora, agora. Parece papo de livro de auto-ajuda, né?

— Só um pouquinho…

— Que seja, não tem jeito, nem todas posturas são sacadas geniais, idiossincráticas. Um punhado de coisa é assim mesmo, são chavões, platitudes. Expressas, ditas ou no papel, elas não tem graça nenhuma. Mas não tem jeito, na prática não tem jeito… Não dá para refutar um dia de cada vez, tudo tem seu tempo, é pra frente que se caminha, essas frases de mãe. Não é descolado não, mas vai contra isso para você ver…

— Frases de tia do Power Point… Nada descolado. — disse Joana antes de entregar o frasco de protetor solar para Lúcia e dar as costas para amiga.

— Mas eu, pelo menos, não estou aqui para ser descolada — respondeu-lhe Lúcia, batendo o frasco, de cabeça pra baixo, na palma da mão esquerda, antes de aplicar o creme nos ombros e no pescoço de Joana.

Sérgio – IX

— Da mesma forma que ser paranoico não faz com que as coisas que você teme não aconteçam com você, porque o seu medo irracional não vai te salvar das coisas horríveis que de fato podem lhe acontecer, sentir-se inferior pode não ser só um complexo, talvez possa ser sim o caso de você ser inferior. Ou uma fraude. Talvez você não tenha esse sentimento ardiloso, autossabotador, de ser uma fraude, talvez seja sim esse o seu caso, o de ser uma fraude. Eu sei que é possível, que é assim, porque esse é… Ahn. Esse é o meu caso.

A Mestra – I

II. PSICOPOMPO

Quando moça, frequentando círculos nos quais era relativamente fácil encontrar pessoas com esse tipo de interesse, conheci um sujeito, moço também, estudante de Engenharia, que criticou com veemência minhas leituras, desenhos, canções, danças, encenações… Praticamente tudo o que eu fazia na época, a bem da verdade. Para ele, essas coisas não passavam de perda de tempo, o mero revirar de concepções gastas, antigas, atrasadas. Todos os esforços intelectuais suportados por aqueles realmente interessados em construir um mundo novo, elevado, superior, deveriam ser direcionados a avanços científicos, ou, bem… Tecnológicos. Isso porque seria, de acordo com esse menino, por meios desses trabalhados que responderíamos as grandes perguntas. Estamos sozinhos nesse universo? Existem seres sencientes, dotados de inteligência, em outros planetas? Seriam irremediavelmente estranhos ou sua condição de alienígenas não os impediria de serem nossos irmãos? Com o estudo da Física, da Matemática, da Química, das ciências exatas, chegaríamos às novas fórmulas e equações necessárias à construção das máquinas fantásticas hábeis a superar as barreiras do tempo; e, quiçá, do espaço; que nos separam dessas criaturas. Todo estudo, toda criatividade, todo o suor deveria ser nesse sentido. Imensa besteira, mas, para mim, valiosa. Foi a provocação da qual eu precisava para firmar o pé, colocar-me decidida no caminho… Ora, minhas experiências já haviam me mostrado, sem sombra de dúvida, que tais seres extra; ou, como querem alguns, intraterrenos; não só existem, mas estão entre nós, de modo que não é necessário nenhum invento, nenhuma máquina extraordinária, que venha a tornar o contato fisicamente possível. As interações são parcas, insuficientes e de uma forma geral frustrantes não porque carecemos dos equipamentos necessários, eles possuem tais equipamentos, eles dominam a tecnologia, vieram cá, e cá estão. Mas porque não existe desejo por parte de tais criaturas de nos contatar com maior frequência e intensidade… Isso eu atribuo a um atraso espiritual, um atraso espiritual nosso, pelo qual nossa civilização passa… Se elevássemos nossos espíritos haveria contato, se fossemos capazes de dos desenvincilhar dos mil nadas que nos circundam e focar nas formas verdadeiras, haveria contato… Foi o que eu pensei então, o que eu confirmei posteriormente, o que existe aqui, o que fazemos aqui, o que você está vendo agora… Então, não era, àquela época, uma questão de abandonar minhas atividades, a natureza delas, mas intensificar esse trabalho, o trabalho de pavimentar o caminho rumo a uma nova elevação… A elevação por meio da qual nos tornaremos dignos do contato, e, sobretudo, dignos do Arrebatamento, no momento final do nosso planeta. Um momento que se aproxima…