PRÓSPERO5.TXT

— Mas você não pode continuar com isso de não dar importância, ahn, de ter um critério, ahn, paralelo…

— Próprio.

— Quase autista, um critério quase autista pra dar valor para as coisas. Você se contenta, de um jeito quase patológico, agrando apenas a si mesmo, atendendo uma série de requisitos absurdos, ahn, totalmente, ahn…

— Idiossincráticos.

— É.

— …

— É absurdo. E olha, desse jeito, desse jeito…. Você não fecunda a realidade.

FERNÃO1.TXT

— O fumo, pra mim, embaralha as conexões com o passado e afasta a perspectiva de qualquer futuro. Existe apenas o agora, um agora exagerado, histérico, nunc stans total. Prezo demais meu raciocínio e minha memória para gostar disso.

— Ahn.

— Entende?

— Sim, sim. É exatamente isso, a sensação é precisamente essa. Mas… Meu sentimento é diverso. Queria que esse nunc stans não fosse artificial e transitório, e que eu pudesse habitá-lo definitivamente.

OLÍVIA5.TXT

Das fotografias que não tirei, minha favorita era uma de Olivia vestida com seu maiô preto, as costas contra uma grande pedra amarela, a parte de trás da cabeça dentro d’água verde escura, a face tomada por prazer e calma, o cabelo liso, preto, ondulando submerso, circundado por tímidos peixinhos também pretos.

BÁRBARA7.TXT

— Você promete um monte de coisas para si mesma, promete que vai adotar uma série de condutas, todas em prol de uma vida melhor, e então falha, miseravelmente. Com o passar do tempo fica nítido o padrão a partir do qual as coisas dão errado. Mas você continua fazendo promessas, convencendo-se de que agora vai. Ou pior, convencendo-se de que dá para salvar alguma coisa, que existe algo para ser salvo, ou, ainda, que qualquer coisa que por fim nos salve. Tem de ser, tem de ser. Desistir completamente é um luxo que só temos diante dos outros, dos erros, da maneira errônea de se portar, dos outros. Isso é claro, descartando a hipótese do suicídio.

— ….

— Aqui, agora, por uma mera questão de estilo.

LÍGIA2.TXT

As primeiras impressões sobre Lígia haviam sido superficiais. Só o óbvio (que era bela, que era jovem, que era inteligente, que tinha olhos muito vivos, que provavelmente dizia apenas um quinto do que lhe vinha à cabeça). Como muita gente naquela época, foi-me apresentada por Fernão. Começamos a nos tornar próximos quando pude perceber nela algo que existia (e ainda existe) também em mim: o medo de ser destruída pelas demandas da sociedade. Mais especificamente: o medo de ser destruída pelas demandas do trabalho. O trabalho iria nos mortificar, apagando as nossas verdadeiras ambições, mutilando o nosso orgulho. Isso se daria com todos, muito naturalmente, mas para nós existia um ponto onde seria mais fácil perceber os danos causados pela adesão forçada ao sistema estúpido, mesquinho e desprovido de criatividade: nossos textos.  O seu deterioramento e a possibilidade de progressivo desaparecimento. Decidi então me aproximar de Lígia pelos mesmos motivos que haviam me levado a ser parceiro de Isabela e de Olivenbaum: gente para para cobrir e dar cobertura, para passar e receber munição, para fazer vigia e ser vigiado, para viver mais um dia.

ISABELA15.TXT

— Mas, então, um romance. Você há de concordar que o romance, o objeto estético em si, é uma abstração. O substrato físico dele é o livro. Então, vamos supor que exista um só exemplar desse livro e eu o destrua. Eu o tenho, é minha propriedade, e eu o destruo. O romance não existe mais? A destruição do livro acaba com o romance?

— Eu não sei. Mas… As símiles e metáforas têm limite. Você não é um romance, Cláudio. Você é uma pessoa, que vai morrer assim que seu corpo parar de funcionar. Você é o concreto, mundano e mortal; como todos nós.