36.

— A-alô?
— Fia, desculpa te ligar no fixo de madrugada…
— Nó, véi, na moral, deu um cagaço aqui sim, ainda bem que é você…
— Foi mal…
— Fala, diaba, que que pega, cê tá bêbada?
— Não, fia, antes fosse, tô insone, mas calma, tem um lado bom, não tô perturbando seu sono de graça, fraga só, tô cubando aqui nas interwebs, passagem aqui ó, para as exatas datas que nós queremos, cento e cinquenta dilmas, pode comprar? Pode comprar?
— Pooode, miga, pode sim. Nossa, que bom que era você, que é só isso…
— Tá grilada com o trem do seu pai, né?
— Pô, sim, miga… O coração dele tá ferrado, qualquer coisinha pode… É…
— Bate na madeira, no nó da madeira, três vezes, fia, credo, vai dar nada não. Pega nada não. Ele vai ficar bem.
— Que seja verdade…
— Amém.

Houve então um longo silêncio, como se elas estivessem uma da presença da outra e pudessem se olhar nos olhos, numa cumplicidade tácita que se esforçava para acolher a compreender de uma forma além da lógica. Como esses momentos eram frequentes na comunicação delas, sabiam também, mais ou menos, o tempo certo da duração dessas lacunas, de forma que, concomitantemente, retomaram.

— É…
— Ou, com sua licença, miga; eu vou tratar de capotar aqui, você deveria tentar o mesmo.
— Então, enchi a cara de café e energético para matar um trampo aqui, o trampo morreu e eu não consigo dormir mais…
— Eita, boa noite… De qualquer forma.
— Inté.
— Beijo.
— Beijo.

35.

 — Ah, tem como trocar essa música?
 — Uai, mas você curte eles, não?
 — Ahm, curto mais… Não aguento mais inglês, tô de altas do inglês, não dou conta mais, minha mente fica automaticamente traduzindo tudo, esse trabalho… Estou cansada, esgotada. Se formos considerar bilíngue a pessoa que tem o domínio pleno de dois idiomas, como se fosse os dois fosse sua língua materna, eu definitivamente não sou bilíngue. Eu sei inglês, o suficiente para ter uma profissão baseada nisso, mas é um trampo, cansa. Cansa o suficiente para eu não querer escutar nem música em inglês agora…
 —  Nó, fia, cê tá cansada mesmo, tá num burnout.
 —  Ai, para, burnout não, tô só o pó da rabiola.
 — Ô, foi mal, amiga, não foi de deboche não, foi sem querer, haha, quis dizer que cê tá cansada mesmo, estressada…
 — Assim, cê sabe que estressada vem de stress, stressed, né? A rigor também não é português.
 — Foi mal, foi mal…
 — Tố precisando de uma cachoeira…
 — Vão pra Bahia, sá.
 — Nó, aí cê falou.
 — Vão pra Salvador. 
 — Nó, boto fé demais.
— A prima de Janete tem uma casa perto de Salvador. Como é? Lauro de Freitas, a gente vê com ela.
 — Nossa, é isso, bora, vão pra praia, ficar à toa na praia, no máximo lendo um trem bem de boa.
 — Bora ler Jorge Amado na praia.
 — João Ubaldo, prefiro João Ubaldo.
 — Pode ser, vamos fazer, a dieta da Bahia, higiene mental na Bahia. Como é que você tá, rola?
 — Acho que no final do ano dá, quando o Sérgio for ficar com Úrsula nas férias de dezembro e janeiro, eu acho que eu consigo parar umas duas semanas.
 — Menina, cê tá doida, só duas semanas? Tem mais de cinco anos que você não tira férias e vai parar só duas semanas?
 — É o que dá. 
 — Aí, não, isso é masoquismo, menina, vamos mais de duas semanas.
 — Se eu ficar duas semanas sem pegar nenhuma tradução nova eu vou surtar.
 — Miga, cê tá surtando, cê tá surtada. Baixa o facho, sá, vamos descansar. Tomar altas cervejas, comer camarão, olhando pra praia. 
 — Não, dá, não dá para deixar Úrsula mais de duas semanas com Sérgio.
 — Caramba, Lúcia, assim não dá, ele é pai, ele tem de também dar conta da filha…
 —  Ô, Joana, eu pulei fora porquê quem tem filho grande é elefante, socorro, o Sérgio não sabe tomar conta nem dele mesmo…
 — Ah, mas você sabe bem como as coisas funcionam, Úrsulinha vai passar mais tempo com a avô e com a tia Drica do que com Sérgio. Tá sussa, sá, bora lá, bora pra Bahia…
 — Vamos ver…
 — Pô, não gostei desse tom, miga. Você tem de animar! Eu tava pensando aqui, se chamássemos o Jeremias e a Cátia?
 — Haha, eles são muito loucos…
 — Pô, lembra do ano novo em Bichinho?
 — Ô, se lembro, haja presepada. 
 — Então, cê chamamos os dois o preço da casa cai pela metade, nós dividimos, olha só.
 — É… Poder ser…
 — Assim, muito paia, né? Cê tinha de parar agora, agorinha mesmo, mas se só dá no final do ano, por conta de férias de Úrsulinha e ela ficar com Sérgio, ou a família de Sérgio, que seja, nós podemos ir olhando passagem e talvez ir de avião, o que cê acha?
 — Pô, aí fica muito salgado… Ao mesmo tempo que dois dias de busão é tenso pra caramba, esse trem de ficar horas parada mais ou menos na mesma posição arregaça a coluna, a digestão, a cabeça…
 — Fora o microcosmo do busão…
 — Vou te falar que o microcosmo do aeroporto com a galera metida à besta montada para pegar avião me dá mais nos nervos, anos de ir para o interior me acostumaram com as crianças berrando, o radinho do carinha sem noção, o fedor de queijo artificial emanando do chips de segunda, o cheiro de pastilha de freio queimada…
 — Eca, pior só quando o povo podia fumar…
 — Mas, sim, ir de avião vai ser muito mais suave, vai dar um clima de férias e de descanso muito mais crível.
 — Vamos embora então, ê, Baia.
 — Opa, é a segunda esquerda.
 — Aqui?
 — Isso.
 — Tudo certo, aí, seus trem estão aí?
 — Peguei tudo aqui. Valeu demais, Jô. Beijo. Até… Terça, é isso?
 — Terça, isso. Beijo, amiga.