— É, tem de tomar cuidado com isso de consertar telhado. Cê tá novo, mas mesmo assim, tem de tomar cuidado.
No final, não passou de um susto. Sérgio tomou seis pontos na cabeça e foi isso, a tomografia indicava que não tinha nada além do galo e do corte.
— A cabeça é cheia de vasos sanguíneos, muito irrigada, qualquer corte vai sangrar muito mesmo. E é aquela coisa, a sangueira assusta, mas no final não é nada demais. É claro, se você estancar, limpar direito, água e sabão, dar os pontos direito.
De volta em casa, Sérgio contorcia-se diante do espelho no esforço de ver a ferida, mas não conseguia. Tateando, podia senti-la, o corte, os nozinhos da sutura. Estava no alto da cabeça, rodeada de cabelo, ninguém veria, ele poderia participar das atividades do grupo.
— Sarou a boca? Ah, que bom, é o seguinte, sexta-feira, seis horas, dezoito horas, no mesmo lugar.
Agora a presteza e a objetividade dela já não lhe eram suficientes, agora ela soava fria, distante. Ah, Rosicler, por que tão seca, sem nenhuma brincadeirinha, sem nenhum sinal de intimidade. Ai, Rosi, ai, Clê. Ai, Frau Rosenkreuz.
Preparou-se bem dessa vez, nada de trajes sociais, foi com um conjunto de moletom todo preto, uma bota de couro exageradamente pesada, luvas de lã também pretas. Parecia um anarquista diretamente saído de um black bloc. Gláucio lhe lançou um olhar de profundo desdém assim que se encontraram. Mais uma vez, as vestes de Sérgio destoavam: Sandro estava apenas com um calção de jogador de futebol, Sibila parecia a própria Gal Costa na capa de Índia, Gláucio a mesma coisa, de sunguinha, parecendo um jovem Gabeira (só que calvo) e Rosicler Rosenkreuz num maiô que a ânsia de Sérgio julgou pudico demais, uma coisa meio salva-vidas. Estavam todos de vermelho, como antes. O grupo participava de uma festa na piscina para qual Sérgio não fora convidado.
— Todo mundo, fora da água, vamos saindo, enxugando, hoje é sério! Hoje é especial!
Entraram pela porta de trás da casa para guardar as toalhas, o aparelho de som, o cinzeiro e os copos de caipirinha. Voltaram com as mesmas roupas. Gláucio, cerimonioso, esperava-os à porta do barracãozinho. Entraram piscando os olhos na escuridão do barracão. Dessa vez, Sérgio e Sandro levantaram e arredaram o sofá, revelando o portão de fechadura estranha. O subterrâneo os recebeu com seu bafo morno, seu distinto sabor fúngico. Logo estavam então na sala. Na sala vermelha. Na sala laranja, com resquícios do dia que fora vermelha. Dessa vez o baú com os protetores estava lá. Não precisou nenhum comando, Sérgio o abriu de imediato, já escolhendo suas peças, preparando-se para o embate. Os demais o seguiram, mas iam se montando lentamente, casualmente, sem a determinação de Sérgio, cujo olhar faiscava, de um suposto amor por Rosicler, de certo ódio por Gláucio. Quando todos terminaram, o cromoterapeuta começou a liderar os trabalhos.
— … mas aí ela disse assim…
— Gente…
— … eu não acredito que…
— Opa, minha gente, vamos lá…
— …
— Pronto? — Gláucio então fechou os olhos, facilitando a lembrança das palavras decoradas. Recitou-as tonitruante, teatral, demoradamente:
— Hoje, hoje, hoje! É o casamento do rei, nascestes para esse dia, fostes por Deus escolhido para a alegria. Vás até a montanha, onde estão os três templos, e veja ali a história. Fique atento! Inspecione a ti mesmo! Se não banhares direito, o casamento pode ser a sua ruína. A ruína vira aquele que falhar. Que fique avisado o leviano.
Enquanto Gláucio conduzia a recitação, Sérgio, em uma tentativa de ser intimidador, copiou alguns pontos do alongamento de Mestre Marombinha, colocando o queixo ora em um ombro, ora em outro; girando os ombros para frente e depois para traz; pressionando os braços contra o peito; tentando risivelmente encostar nas costas, no espaço entre as escápulas; girando a cintura. Não tirava os olhos de Gláucio, esperando como da outra vez, o comando para que começasse a pancadaria.
Gláucio continuou, falando agora de forma solta, de improviso:
— Bem, como da outra vez, vamos antes do casamento alquímico, do nosso potente experimento alquímico pela via úmida, proceder com o banho, a nossa sagrada, nunca deixada de lado, meditação propedêutica em quatro passos… Quatro passos de saneamento, de uma limpeza mental, espiritual profunda… — ao que Sérgio ia girando a cintura, como se lançando um bambolê invisível.
— Vamos então, meus caros, meus seletos poucos, vamos pensar naqueles que nos trouxeram dor, vamos imaginar quem nos fez sofrer, vamos pensar nas injustiças, no amargor das injustiças e por quinze minutos deixa aflorar a nossa raiva, vamos dei-
A fala de Gláucio foi interrompida por um passo, quase um tropeço, de Sérgio, seguido por um soco louco, um punho rodando desleixadamente que, dada a inexistência de técnica também por parte de Gláucio, pegou na têmpora do cromoterapeuta, de jeito o suficiente para jogá-lo ao chão. Caído, Gláucio, esperando Sérgio vir montá-lo, começou a espernear com nervosismo. Sérgio foi como se os chutes não existissem, e, como eles existiam, tomou um bocado de pontapés no rosto. O protetor impediu que se cortasse, que sangrasse, que a pele fosse por demais punida. Aguentou, tomou aqueles coices e seguiu firme, agarrava as pernas de Gláucio, tomava chutes e as soltava, voltando a segurar o cromoterapeuta, perdia-o e apanhava. Numa dessas foi com tudo, avançando com uma cotovelada que retumbou na coquilha de Gláucio. Superou as pernas, estava em cima do danado. Encurvou-se completamente, agarrou Gláucio pelo protetor de peitoral e começou a bater seu capacete no capacete do homem que, por sua vez, batia no chão.
— E agora, seu filho da puta, e agora?
Deu então uma cabeçada tão tremenda em Gláucio que ficaram os dois abobados, aturdidos, mas ainda agarrados em luta corporal. Eram como aqueles veados que depois trocarem galhadas se enroscam e são pateticamente forçados a encararem o inimigo até conseguirem desemperrar os chifres. Tiveram de ser separados pelos demais — que, ao contrário dos dois, encerram a atividade prontamente assim que Sibila deu o aviso que os quinze minutos de raiva e agressão deveriam acabar — Sandro puxou Gláucio para um lado, Sibila arrastou Sérgio para o outro. O professor de inglês ia retomando a respiração. Apesar do tanto que apanhara, considerou-se o vencedor daquela peleja.
Depois de alguma demora para se levantar, Sérgio caminhou triunfalmente até Rosicler e começou a remover seus protetores, ostensivamente checando seu corpo, puxando as mangas do moletom, baixando as meias. Pediu que Rosicler verificasse seu rosto:
— Dessa vez, vessa vez eu me machuquei? Tá… Tá alguma coisa sangrando?
Rosicler, com as faces ruborizadas em razão da altercação pugilística que tivera com Sibila e Sandro, os olhos ainda no modo luta, faiscando, pegou Sérgio pelo queixo, como quem pega uma criança muito pequena a quem vai se ministrar um remédio via oral ou como quem abre a boca de um animal doméstico, e, forçando-o a se abaixar com a leve torção de sua mandíbula, enfiou o indicador e anelar na sua boca, passando-os pelos dentes e pela gengiva de Sérgio.
— Parece que está tudo bem dessa vez — respondeu-lhe Rosicler, enxugando a mão molhada de saliva na manga de Sérgio com um muito sútil, porém ainda claramente perceptivo, desdém. Sérgio ficou decepcionado, esperando um gesto mais íntimo, uma coisa sexual.
Gláucio, depois de tantas pancadas na cabeça, pediu para sair. Foi para o banheiro que Sérgio descobriria depois que havia na sala verde e de lá todos puderam escutá-lo vomitando. Quando voltou para a sala vermelha — com o entorno da boca meio molhado, os olhos avermelhados e uma expressão de perdido na face — , os demais, que limpavam os protetores com borrifadores esterilizadores e lencinhos umedecidos desinfetantes, questionaram-no com olhares. Sandro expressou-se claramente:
— Dr. Gláucio, o senhor… O senhor está bem? Não seria melhor adiarmos a execução do…
— Não, não, Sandro, tudo certo, é do experimento … — ele disse enxugando a água do seu rosto, reminiscente do instante anterior, quando lavava o rosto — É assim mesmo, essas coisas acontecem. Da outra vez foi o nosso colega Sérgio, dessa vez fui eu quem se machucou um pouco. Mas não foi nada grave não, nada que se traduza a um risco às nossas atividades.
Foi então descendo, assentando-se no chão de pernas cruzadas:
— Vamos agora abrir espaço para as manifestações da bile negra, vamos deixar a tristeza, a melancolia nos tomar, vamos nos concentrar no baço, no spleen. Chorem, meus colegas, meus discípulos, chorem, uivem, gemam de dor! É hora de sentir o desassossego mais brutal, o desalento total, o abandono completo.
Mas Sérgio sentia só vitória, uma vitória completa, triunfante, sobre aquele que ousara ser um obstáculo entre ele e a mais nova panaceia para sua condição, Rosicler. Teve então de fingir, encolheu-se todo e ficou com a cabeça encostada na parede, fingindo que a batia contra os tijolos. Chegada a fase do silêncio, da total imobilidade, Sérgio apenas desenrolou suas ataduras de boxeador, descalçou o coturno e se deitou e lado, ainda virado para a parede, imaginando como seria tocar de novo a pele de Rosicler, beijá-la, senti-la toda.
Foi então correndo direto para ela quando começou a quarta fase, fase da meditação, a fase de ser feliz, dos folguedos, da gritaria alegre. A recepção de Rosicler parecia total, mas, Sérgio não pode deixar de notar, tinha alguma coisa de artificial. Ela olhava direto em seus olhos, sorrindo, dando a entender o tempo todo que prestava atenção nele, no que dizia e fazia, abraçou-lhe, dançou rodopiando de mãos dadas com ele, chamou várias vezes pelo nome Sérgio, Sérgio, Sérgio. Ele se regozijou muito, mas não sem a dúvida de que aquilo fosse apenas um teatro, Rosicler estava tão somente participando dos ritos daquele grupelho místico, a performance dela era intensa, mas não era nada pessoal. Era isso? Era mesmo? Ou era apenas Sérgio, acostumado a ser preterido, custava a crer no agora, numa mudança de sua sorte? A suspeita lhe perturbava, fora tão difícil estar ali, participar daquilo, e agora essa maldita pulga lhe tirava a fruição plena da situação.
— Agora parem, simplesmente parem, fiquem como estão, assim, está ótimo. Perfeito. Fiquem assim, vou buscar o cubo. Não façam nada. Não vamos perder o produto de nossos trabalhos até aqui. Não vamos perder a nossa purificação.
— Bem, todos, bem, com exceção de Sérgio, ahn, Sérgio, vamos lhe explicar isso depois, mas bem, nós aqui sabemos dos problemas que tivemos da última vez que conduzimos esses experimentos com esse fito… Ahn, de conjurar, de criar, um ser, um ser no éter, um bebê astral. Então, vamos continuar usando o cubo, a frequência Heinlein, mas… Vamos com cuidado agora, vamos em passos pequenos… Passinhos de bebê… Então, para continuarmos indo com segurança eu criei um procedimento, uma liturgia, chamada o Trabalho Mereschkowski. A Árvore da Vida de Mereschkowski é cabalística… Nos vamos fazer agora então…
— A dança do plastídio!
— Não, isso foi semana passada, vamos fazer hoje algo diferente, uma consequência da dança do plastídio, um passo adiante… Hoje vai ser o merengue da mitocôndria…
Ao que todos, com exceção de Sérgio, agacharam-se quase que de cócaras e começaram a dançar ora apoiando-se sobre as coxas, ora balançando-se em vigorosos movimentos pélvicos, mexendo os braços em sequências rápidas que pareciam coreografadas. Olhando para os lados, e a essa altura eu acho que não preciso continuar reforçando mais toda a parte do sem jeito, Sérgio tentou acompanhar seus desenvoltos colegas. Seguia principalmente Rosicler, encantando com a suavidade da linha de seu maxilar, a delicadeza de seu nariz empinado. Ela continuava olhando e sorrindo para ele, e agora ele conseguia acreditar ou fazer de conta que acreditava, que era uma coisa pessoal e profunda, com ele, ele Sérgio. Quis se aproximar dela, envolvê-la nessa dança doida, mas era contra a planejamento de Gláucio.
— Não, não, separa, separa, tem de separar, Rosicler vai para lá, vai. Rosenkreuz!
Respondeu Rosicler, ainda agachada como os outros, parecendo alguém imitando um caranguejo [ou a base mabu do kung fu (ou a base kiba-dachi ou naihanchi-dachi do karatê)], rodopiando feito em volta de um eixo perfeitamente centrado em sua coluna acertadamente ereta, ao mesmo tempo deslizando para a esquerda, afastando-se do grupo.
— Isso, isso. Agora, um instante, iniciando a frequência Heinlein aqui. Um, dois, foi. Vocês cá, isso, vocês agora vão ficar todos juntos, suave, numa pessoa só, um ser somente, suavemente, vocês serão como órgãos, suave, órgãos apenas, sem autonomia, organelas, suave, vocês agora vão começar um incrível processo de regressão, suave, vocês serão organelas de uma célula, suave, uma regressão tremenda, vejam só, agora suavemente, você vão, suavemente, olha só são apenas organelas, vejam só, um ser unicelular, vão são, suave, uma célula, suavemente. Rosicler, você agacha e rebola para lá, você está fora. Isso, brilhante, vai rebolando aí, Rosicler, isso, brilhante, vocês agora, o ser que vocês são, esse ser único. Vocês estão bem unidos? Um ser só? Esse ser está com fome, isso, ele precisa comer? Como ele come? Ele fagocita, fagocita. Faaagocita, meu amor, faagocita; faagocita meu amor, a minha vida. Tá que tá ficando, tá ficando muito legal. Suave. A membrana há de se abrir e pseudópodes se formarão, isso, isso… Chegando perto agora de Rosicler… Faaagocita, meu amor, fagocita…
Diante de um Sérgio abobado, treinado na frente de uma tela, banhando em luz azul, inábil diante do sexo-sexo, a coisa ela mesma, Sandro e Sibila, mais uma vez, tomaram-no com alvo de suas explorações erógenas. Enquanto os quadradinhos coloridos da frequência Heinlei explodiam dançando e rodando por toda a sala, interpretou o casal a ordem de Gláucio de se transfonarem em um ser só como mais um sanduíche humano, os dois espremendo vigorosamente Sérgio, Sandro lhe masturbando com duas mãos e Sibila fazendo shiatsu em seu períneo. A membrana protozoária se abrindo em pseudópodes famintos, fagocitantes, era o próprio Sérgio, fazendo caretas horríveis, ainda que de prazer, encurvando-se e tentando se esticar para encostar em Rosicler com dedos curvos como garras.
— Rosicler, calma, ainda não, você é também um ser, suave, um ser unicelular, isso, suavemente, mas você não é um ser qualquer, você é a mitocôndria em sua vida antes da assimilação, não uma organela, uma mitocôndria livre, autônoma, energética. Cadê a a energia? Agacha, Rosenkreuz, rebola, rebola. Energética! Dinâmica! Isso, bate o cabelo! Você é a chave da vida! Você é o catalisador da grande revolução filogenética! Isso, requebra! A mitocôndria ancestral, livre, leve e solta em todo seu esplendor! Isso, suave!
Rosicler era então a própria muriçoca doida, sintetizando dezenas de coreografias de axé e pagode, encaixando-as harmonicamente num esvoaçar que assanhava e bambeava Sérgio. Seria ela o amor de sua vida? Ou seria ela uma incrível, perfeita, atriz, dançarina e cantora? Que fosse. Que fosse tudo. Que fosse tudo engano. Me engana então, me engana, pensava Sérgio. E quando não pensava assim, pensava que era de verdade, e aí nem mais pensava, sentia como se fosse de verdade, sentia que era verdade.
— Agora, isso, ainda no ensejo da fagocitose, a membrana se projeta em pseudópodes e abraça, e pega, e engole, a mitocôndria ancestral, isso, agachem, rebolem, suave, a mitocôndria se debate, rejeita, gente, gente, com cuidado, só um teatrinho, isso, suavemente, isso, a mitocôndria debate no vacúolo digestivo, não quer ser comida, digerida,agora, começam a se dissolver os eus desses seres, ó, que momento mágico, a concepção sagrada dos eucariontes! A simbiogénese! A endossimbiose! A mitocôndria agora um endossimbionte, uma parte desse novo ser! É o despertar de uma nova era, senhoras e senhores! Isso, suavemente, isso, suave. Isso, continuem assim. Isso, suave! Agora, que momento lindo, é o toque de Vênus, fazendo os seres se propagarem, viajarem no tempo, por meio de gerações e gerações, a gestação de tudo, a geração,a gestação, o gesto e o gerir!