36.

— A-alô?
— Fia, desculpa te ligar no fixo de madrugada…
— Nó, véi, na moral, deu um cagaço aqui sim, ainda bem que é você…
— Foi mal…
— Fala, diaba, que que pega, cê tá bêbada?
— Não, fia, antes fosse, tô insone, mas calma, tem um lado bom, não tô perturbando seu sono de graça, fraga só, tô cubando aqui nas interwebs, passagem aqui ó, para as exatas datas que nós queremos, cento e cinquenta dilmas, pode comprar? Pode comprar?
— Pooode, miga, pode sim. Nossa, que bom que era você, que é só isso…
— Tá grilada com o trem do seu pai, né?
— Pô, sim, miga… O coração dele tá ferrado, qualquer coisinha pode… É…
— Bate na madeira, no nó da madeira, três vezes, fia, credo, vai dar nada não. Pega nada não. Ele vai ficar bem.
— Que seja verdade…
— Amém.

Houve então um longo silêncio, como se elas estivessem uma da presença da outra e pudessem se olhar nos olhos, numa cumplicidade tácita que se esforçava para acolher a compreender de uma forma além da lógica. Como esses momentos eram frequentes na comunicação delas, sabiam também, mais ou menos, o tempo certo da duração dessas lacunas, de forma que, concomitantemente, retomaram.

— É…
— Ou, com sua licença, miga; eu vou tratar de capotar aqui, você deveria tentar o mesmo.
— Então, enchi a cara de café e energético para matar um trampo aqui, o trampo morreu e eu não consigo dormir mais…
— Eita, boa noite… De qualquer forma.
— Inté.
— Beijo.
— Beijo.

35.

 — Ah, tem como trocar essa música?
 — Uai, mas você curte eles, não?
 — Ahm, curto mais… Não aguento mais inglês, tô de altas do inglês, não dou conta mais, minha mente fica automaticamente traduzindo tudo, esse trabalho… Estou cansada, esgotada. Se formos considerar bilíngue a pessoa que tem o domínio pleno de dois idiomas, como se fosse os dois fosse sua língua materna, eu definitivamente não sou bilíngue. Eu sei inglês, o suficiente para ter uma profissão baseada nisso, mas é um trampo, cansa. Cansa o suficiente para eu não querer escutar nem música em inglês agora…
 —  Nó, fia, cê tá cansada mesmo, tá num burnout.
 —  Ai, para, burnout não, tô só o pó da rabiola.
 — Ô, foi mal, amiga, não foi de deboche não, foi sem querer, haha, quis dizer que cê tá cansada mesmo, estressada…
 — Assim, cê sabe que estressada vem de stress, stressed, né? A rigor também não é português.
 — Foi mal, foi mal…
 — Tố precisando de uma cachoeira…
 — Vão pra Bahia, sá.
 — Nó, aí cê falou.
 — Vão pra Salvador. 
 — Nó, boto fé demais.
— A prima de Janete tem uma casa perto de Salvador. Como é? Lauro de Freitas, a gente vê com ela.
 — Nossa, é isso, bora, vão pra praia, ficar à toa na praia, no máximo lendo um trem bem de boa.
 — Bora ler Jorge Amado na praia.
 — João Ubaldo, prefiro João Ubaldo.
 — Pode ser, vamos fazer, a dieta da Bahia, higiene mental na Bahia. Como é que você tá, rola?
 — Acho que no final do ano dá, quando o Sérgio for ficar com Úrsula nas férias de dezembro e janeiro, eu acho que eu consigo parar umas duas semanas.
 — Menina, cê tá doida, só duas semanas? Tem mais de cinco anos que você não tira férias e vai parar só duas semanas?
 — É o que dá. 
 — Aí, não, isso é masoquismo, menina, vamos mais de duas semanas.
 — Se eu ficar duas semanas sem pegar nenhuma tradução nova eu vou surtar.
 — Miga, cê tá surtando, cê tá surtada. Baixa o facho, sá, vamos descansar. Tomar altas cervejas, comer camarão, olhando pra praia. 
 — Não, dá, não dá para deixar Úrsula mais de duas semanas com Sérgio.
 — Caramba, Lúcia, assim não dá, ele é pai, ele tem de também dar conta da filha…
 —  Ô, Joana, eu pulei fora porquê quem tem filho grande é elefante, socorro, o Sérgio não sabe tomar conta nem dele mesmo…
 — Ah, mas você sabe bem como as coisas funcionam, Úrsulinha vai passar mais tempo com a avô e com a tia Drica do que com Sérgio. Tá sussa, sá, bora lá, bora pra Bahia…
 — Vamos ver…
 — Pô, não gostei desse tom, miga. Você tem de animar! Eu tava pensando aqui, se chamássemos o Jeremias e a Cátia?
 — Haha, eles são muito loucos…
 — Pô, lembra do ano novo em Bichinho?
 — Ô, se lembro, haja presepada. 
 — Então, cê chamamos os dois o preço da casa cai pela metade, nós dividimos, olha só.
 — É… Poder ser…
 — Assim, muito paia, né? Cê tinha de parar agora, agorinha mesmo, mas se só dá no final do ano, por conta de férias de Úrsulinha e ela ficar com Sérgio, ou a família de Sérgio, que seja, nós podemos ir olhando passagem e talvez ir de avião, o que cê acha?
 — Pô, aí fica muito salgado… Ao mesmo tempo que dois dias de busão é tenso pra caramba, esse trem de ficar horas parada mais ou menos na mesma posição arregaça a coluna, a digestão, a cabeça…
 — Fora o microcosmo do busão…
 — Vou te falar que o microcosmo do aeroporto com a galera metida à besta montada para pegar avião me dá mais nos nervos, anos de ir para o interior me acostumaram com as crianças berrando, o radinho do carinha sem noção, o fedor de queijo artificial emanando do chips de segunda, o cheiro de pastilha de freio queimada…
 — Eca, pior só quando o povo podia fumar…
 — Mas, sim, ir de avião vai ser muito mais suave, vai dar um clima de férias e de descanso muito mais crível.
 — Vamos embora então, ê, Baia.
 — Opa, é a segunda esquerda.
 — Aqui?
 — Isso.
 — Tudo certo, aí, seus trem estão aí?
 — Peguei tudo aqui. Valeu demais, Jô. Beijo. Até… Terça, é isso?
 — Terça, isso. Beijo, amiga.

34.

— Não aguento mais tudo assim tão…

Sérgio teve uma síncope no quartinho. Voltou a si impressionado com a sua própria logorréia, já fora do abrigo subterrâneo, deitado em um divã no consultório de Gláucio. Entregue então a uma litania incompreensível, atravessada por choro infantil e sons desarticulados, descobriu-se no meio de uma frase que deixou, interrompida, flutuando no ar enquanto dava conta do que passava, como se tivesse acabado de acordar. Gláucio o olhava preocupado. Logo lhe ofereceu um copo d’água.

— Isso, água é bom. Acalma. E aí? Você está melhor?

— Ah, um pouco, um pouco mais calmo.

Ficou combinado então que Sérgio faria sessões com Gláucio, de forma a conseguir se livrar das influências negativas que levaram ao fracasso da geração da tulpa.

— E… E aquilo na sala verde?

— Aquele ser foi absorvido por você, Sérgio. Ele está latente, dormente em seu seio. Caso nosso procedimento aqui tenha sucesso, ele poderá nascer novamente, da forma como realmente desejamos.

Sérgio então comparecia aos encontros semanais desanimado, subjugado, mas esperançoso de enfim voltar a participar das orgias que Gláucio conduzia no subterrâneo. Gláucio não precisava guiar Sérgio de forma alguma, o professor de inglês seguia automaticamente pelos caminhos que o cromoterapeuta desejava, poupando-lhe muito trabalho. Enquanto luzes em diferentes cores e intensidades banhavam Sérgio, ele ia discorrendo a respeito daqueles que supunha ser os seus problemas.

— Ah, a minha vida tem sido um final de festa, não aquele final de festa legal, no qual as pessoas foram se enturmando, criando ali aquele dialeto engraçado só daquele momento, e agora estão só elas ali, curtindo; mas aquele final de festa feio, desarrumado, quando tudo o que você esperava da festa não aconteceu, sobraram só os bêbados dando trabalho e toda aquela sujeira… Sério… Uma coisa não patética, mas, assim… Batética, sabe?

— Unhum…

— Mesmo depois de ter decepcionado meus pais, e depois, minha mulher, acho que já até minha filha mesmo, acho que já chegou nisso, eu ainda tinha uma expectativa de que algo ia acontecer, sabe? Que mesmo já sendo adulto, um adulto até já gasto, mal cuidado, muito mal conservado, ainda que não exatamente velho, eu ainda teria uma chance de me descobrir um cisne, sabe?, e não o patinho feio. Sabe? Descobrir que minha vida é uma história com algum significado, que eu sou o protagonista. A expectativa disso. Eu vivo na expectativa disso, de alguma forma me destacar dessa.. Mesmice, desse marasmo, dessa mediocridade, sabe? Mas não rola. Todo dia é a negação dessa expectativa. E eu não consigo aceitar isso, eu não supero isso. Sério, isso para mim é insuperável… Ser… Ser normal. Eu não fui feito para esses tempos, sério, para agora, para essa era, eu sou um ser de uma outra era, outro tempo, acho que estou… Estou desperdiçado aqui. É sério, Gláucio, eu não fui preparado para isso, eu não dou conta disso. Acho que eu me iludi demais e a desilusão é muito dolorosa. Ou talvez eu simplesmente me perdi, perdi a oportunidade de ter essa vida significativa, rolou o momento, eu mosquei, ele passou, e passou, está passado. Sabe?

— Unhum…

— Tipo, achei que alguma coisa ia se abrir para mim, que eu ia me descobrir um lobisomem; um X-Men; que eu ia ver em uma parede os dizeres de entrada do Teatro Mágico, só para os loucos; que eu iria tirar uma espada mágica da pedra, que uma aranha radioativa iria me picar, que eu ia ter o Estalo do Vieira… Qualquer coisa, qualquer coisa menos esse marasmo, esse nada… Isso era tão seguro para mim, tão claro, era tão garantido… Eu passei minha infância, minha adolescência toda olhando para as pessoas mais velhas e as desprezando profundamente, dizendo para mim mesmo que quando chegasse a minha vez de viver a vida efetivamente, e não tão somente me preparar e esperar, seria imensamente diferente, que eu não seria mais um, que eu saltaria graciosamente sobre as dificuldades da vida adulta, que as coisas que perturbavam os meus pais, meus parentes mais velhos, meus professores, não me perturbariam… Mas, cá estou, normal, medíocre, ou pior, aquém do medíocre, fudido… Eu era… E algum momento eu fui… Diferente… Eu acreditei que eu tinha um potencial enorme. Eu tinha um potencial… Enorme? Eu tinha um potencial? Sabe?

— Sim, sim, prossiga…

— E agora parece que eu sou um fantasma, que eu nem devia estar aqui, um morto vivo que se arrasta por aí, somente para se lembrar de seus sonhos e perceber que são impossíveis, intangíveis…

E Gláucio não lembrou Sérgio que ele tinha uma filhinha bondosa, inteligente e linda que lhe amava. Que, mesmo com todos vícios e abusos cometidos contra ele mesmo, tinha uma saúde ótima. Que, para os padrões brasileiros, vivia muito bem, maravilhosamente bem. Que ele poderia, todo dia, comer quase o que ele quisesse, quando quisesse. Que ele, mais que empregado, era sócio proprietário da sua própria escola de inglês. Que, apesar de não ter casa própria, conseguia pagar seu aluguel e morava sozinho com total independência e autonomia. Que ele, se estava achando sua vida ruim, poderia meter as caras e mudar completamente. Gláucio não disse nada disso, ele foi só dando corda, dando corda, dando corda…

33.

Na quinta-feira, pela noite, Rosicler ligou para Sérgio. Ele imaginou que fosse simplesmente o convite para mais um encontro, sempre havia uma pequena variação no horário que precisava ser comunicada com antecedência. Mas era um assunto diferente. A voz de Rosicler, porém, continuava a mesma, com o usual tom despreocupado.

— Ei, Sérgio, boa noite, cê tá bom? Ah, legal, que bom. Aqui, Sérgio, nós estamos com um pequeno problema no nosso procedimento, e… Eu tenho que te passar isso. O nosso objetivo, né?, a concepção de um ser no plano astral, a egrégora, a tulpa, é… Cara, não está funcionando, não… Não está dando certo. Nós achamos, é, o Gláucio acha que isso é por conta de algumas energias, assim, ruins, envolvidas no ato da concepção… Na alquimia pela via úmida, sabe? Tipo, todo mundo têm de contribuir, sabe? Todo mundo tem de dar a sua parte, para no final nós chegarmos nesse todo que seja superior à soma das partes, nesse ser no plano astral… Mas, nem todo mundo está dando uma colaboração, assim, positiva, sabe? E assim, pelos testes…. Nós fizemos alguns testes, é… O Gláucio fez uns testes, né? O Gláucio, você sabe, né?, ele tá num nível muito mais avançado do que o nosso, e assim, pelos testes do Gláucio, ele… Ele foi capaz de identificar as energias que estão atrapalhando o processo, eu digo, a origem das energias que estão abortando o ser astral… E, Sérgio, não é… Não é nada pessoal, mas… Pelo o que nós pudemos perceber, assim, pelo que o Gláucio pode perceber, né? O problema… Ai, como que eu falo isso? Olha, não é realmente nada pessoal, viu? Mas o problema… Sérgio… O problema é você. Alô? Alô? Sérgio? Sérgio, cê tá me escutando?

Sérgio ficou mudo, absolutamente mudo, de maneira que nem sua respiração podia ser ouvida por Rosicler. Desligou o celular ouvindo Rosicler ainda falando do outro lado e experimentou lentamente, numa elegância afetada, colocar o celular sob a mesa e olhar para a parede como se aquilo fosse um leve aborrecimento. Segundos depois acabou arremessando o celular contra a parede, que no impacto se separou em quatro partes que ficaram jogadas no chão. Errou pela casa bufando, gritando. Pensou logo em descontar toda a raiva, toda frustração nas partidas de WoW, já macerando os comprimidos de Ritalina que ia cheirando enquanto o computador ia carregando, mas estava tão descompensado que mal conseguia jogar, cometendo erros básicos que o fizeram subitamente desistir, arremessando o teclado contra a parede. Algumas teclas se desprenderam do suporte e acabaram caindo no chão, juntando-se às partes do celular. Sérgio, descalço, acabou pisando em uma delas, justamente um “R”, o que o irritou ainda mais, como se aquilo fosse uma sina inescapável.

— R de Rosicler, R de rejeição — ele gritou contra as paredes, atirando a tecla no quintalzinho. Logo depois já estava lá fora procurando-a, precisava usar o computador. O plano era se acabar na pornografia, exaurir todas suas forças por meio da masturbação. Encontrou o “R” no quintal, catou as demais teclas caídas dentro de casa e foi colocando-as no teclado enquanto fumava uma ponta de baseado. Foi fumando outras, na total falta de paciência de preparar um cigarro inteiro, enquanto fazia sua seleçãozinha de vídeos, mas, em vão: seu pênis permanecia flácido, murcho, pálido e seco, apesar da oferta de imagens e sons, apesar da Ritalina e da maconha, o combo que normalmente lhe deixava louco. Conseguiu sua descarga de energia então chorando e espancando o colchão, gritando com o rosto fortemente pressionado contra o travesseiro, feito uma criança desesperada. Chorava por ter perdido Rosicler, por não mais participar daquelas estranhas orgias, a única forma que tinha de ter Rosicler. Chorava de raiva de Gláucio. Era isso então, pensou, as coisas tinham voltado ao ponto inicial no qual era necessário confrontar Gláucio. Discursos enfurecidos iam se construindo na sua cabeça, pensamentos que só o faziam ter mais raiva, chorar mais. Conseguiu dormir só quando já era de manhãzinha, o céu era rosa claro e uma brisa suavíssima soprava por todo Santa Tereza.

Quando acordou, já era tarde, bem depois do almoço. Sentia-se lento, com a cabeça pesada, péssimo. Havia rangido tantos os dentes e batido tanto os maxilares que imaginava que as raízes estavam todas se soltando de suas gengivas, que estava prestes a perder os dentes. Seus fios de cabelo, sentia então, de tanto puxá-los, penteá-los e despenteá-los exasperadamente, eram como cabos de ferro retorcidos enfiados em sua carne viva, irradiando dor por por seu couro cabeludo irritado, dor a cada levíssimo movimento, dor a cada lufada de ar. Ora se achava um alienígena, um estranho em uma terra estranha, um ser que vaga desmemoriado, impressionando-se com tudo; ora lembrava-se exatamente porque estava tão desolado. Passou horas no banho, hipnotizado pelo barulho do chuveiro, pelo girar da água e da espuma ralo abaixo, saindo quando já haviam cordilheiras e vales na pele de seus dedos esbranquiçados. Comeu um sanduíche com as poucas coisas que encontrou na geladeira, fez de tudo para não escutar as mensagens na secretaria eletrônica do telefone fixo e deixou o celular despedaçado no chão. Comprou uma garrafa de whisky barato e foi para a porta da casa de Gláucio, no Santo Antônio, bebendo já no táxi.

Chegando lá, colocou-se diante da frente da casa como o mais paroquial dos bêbados, ostentando a garrafa de whisky, cambaleando, falando sozinho. Imaginava Rosicler chegando e ele se jogando diante dos pés dela, chorando por ela. Isso ou se atirando em fúria contra Gláucio. Gláucio enfim, foi quem apareceu. Vinha do mercado, carregando compras, e viu Sérgio primeiro.

— Ei, Sérgio — ele disse de longe, quase gritando, precavendo-se, chamando atenção.

Sérgio teve um susto, na sua imaginação era ele que abordava, que pegava Gláucio desprevenido.

— Aqui, me ajuda com isso aqui. Pega essa sacola aqui. Ou, a Rosicler te falou, né? É sobre isso que você quer conversar, né? Vamos lá. Opa, deixa eu pegar minha chave. Opa. Você primeiro.

E na imaginação dele Gláucio não deixava entrar, seria um esforço imenso conseguir entrar, uma disputa.

— Eu vou ali, um instante, já vamos conversar. A mesa do café está servida aí, veja. Você está com fome?

— Não…

Gláucio voltou vestido completamente de vermelho.

— Seria melhor que você estivesse com suas vestes…

— Olha, Gláucio, vamos direto ao assunto?

— Claro. Você quer vê-la?

— Rosicler?

— Rosicler, o quê? Não!, claro que não, a tulpa.

— A tulpa?

— Sérgio, o que você está fazendo aqui? O que nós estamos fazendo aqui? É, a tulpa, exatamente, a tulpa, você é idiota, Sérgio?

— Ela… Surgiu?

— Sérgio, o que a Rosicler te contou?

— Não, sim…. Ela me contou, ela me contou.

— Então, é isso, deu errado, muito errado. E eu te digo, você quer vê-la?

— Ela está aqui?

— Ela pode se manifestar no quarto verde.

— Ah… Vai te fuder, Gláucio! Vai tomar no cu!, tulpa é o caralho, cê tá é de marcação comigo.

— Quero você ir lá no quarto verde e falar isso comigo.

— Merda de quarto verde, Gláucio. É só você me fudendo, me separando de Rosicler.

— Tá beleza, Sérgio. Entra no quarto verde, entre lá, fala que não tem nada errado, que não tem uma entidade bizarra lá e aí… E aí eu continuo essa conversa com você.

— Quero ver então, quero ver que porra é essa.

— Sim, se você vir o que tem no quarto verde, nos conversamos.

Eles seguiram pelo barração, pelo alçapão e então, dentro do abrigo subterrâneo, chegaram à porta do quarto verde. Das vezes que entrará lá , Sérgio apenas vira um cômodo vazio, sem entender exatamente qual seria seu propósito.

— Vai, entra.

— Sozinho não, que cê vai é me prender aqui.

— Toma, pode ficar com a chave. Vai, entra.

Sérgio entrou.

Talvez as paredes da sala fossem pintada propositalmente com uma superposição de manchas, listras e rabiscos em diferentes tons de verde, formando um padrão aleatório no qual, pela ocorrência da pareidolia, as pessoas vissem coisas. Talvez a péssima iluminação da sala, talvez a estática e talvez o cheiro estranho de fumaça fossem elementos que aumentavam esse efeito, aumentavam a probabilidade de Sérgio ver coisas. Talvez o fato dele ter passado uma noite terrível, perturbado e drogado, ter se alimentado parcamente e estar bêbado o fizesse ver coisas. Talvez o simples jogo psicológico de Rosicler e Gláucio, afirmando que uma entidade indesejada havia sido conjurada pelas ações do grupo, induzisse-o a ver coisas. Ou talvez existisse mesmo naquela salinha subterrânea abafada uma criatura elusiva e proteica, um hominídeo mofino, feito de sombra e fumaça, que assumia a face de Rosicler num riso de desprezo; a careta de desaprovação de seu pai, Doutor Taveira; o rostinho de choro de sua filha Úrsula; o rosto absolutamente gélido que Lúcia, a mãe Úrsula, apresentava-lhe desde que separaram.

— Gláucio, ô, Gláucio, me deixa sair.

— A porta está aberta, Sérgio.

Sérgio estava paralisado.

— Gláucio, ô, Gláucio, me ajuda, me tira daqui.

32.

Luzinhas tremebundas, rastros fugidios, estrelinhas oscilantes com rabinhos se desfazendo em filigranas translúcidos. Tremeluz. O brilho perdido, achado. Lustre, ilustração. Um arrepio constante. Novo. Novo, novo, novo. O muito velho, o mítico tido por perdido e o novo, o muito novo. A possibilidade de algo inédito na vida, nessa vida supostamente já perdida de Sérgio. Padrões geométricos, fractais ritmados. Variações incríveis, fugas maravilhosas. Esferas furta-cor girando, girando, surgindo e explodindo. Amebas iridescentes se deformando e multiplicando. Arabescos sublimes, imediatamente conjurados e esquecidos. Uma tensão, mas não qualquer tensão, a tensão certa, necessária, nem um pouco além, nem um pouco aquém. A vibração certa, ecoando, redobrando, indo e voltando, reverberando, banhando os céus, lavando a terra, encantando as águas. Um homem careca, corpulento, suado, desesperado, grita no meio da Praça Sete que Deus sabe o que faz, que Deus é bom em tudo o que faz, que Deus é sempre bom, e Sérgio não se apavora, não o contradita em sua alma, quer gritar Amém, acha que é assim sim, sim, Amém. Ah, que perfeito, que o que ele gostava mesmo na vida era isso, era reviver, era reconstruir a experiência, de novo e de novo, em sua mente, mentindo-a, deformando-a, sentindo-a como nunca foi, enviesando-a, visando o mito, reconstruir e adiantar, planejar, imaginar a próxima vez, uma suspensão total, a dissociação total, perfeita. E lá estava ele, com um material mental perfeito na cabeça, seguindo a Afonso Pena, descendo para o Floresta, andando pelo Santa Tereza, dando suas aulas, indo e voltando da casa para o trabalho, jantando no bar, dando um tê com Cabelo e Nervoso na pracinha, sendo um displicente pai de final de semana, fazendo tudo sem parar de pensar em Rosicler, em cada aspecto de Rosicler, no corpo todo de Rosicler. Os demais e seus respectivos corpos, a orgia, a magia sexual, tudo ruído, sua fixação era puramente em Rosicler. E era tamanha, tão sinestésica, tão presente, que Sérgio enfim se sentia bem, ou algo muito próximo disso: conseguia disfarçar a existência de seus males quase perfeitamente, deixando na mente quase nenhum rastro da racionalização, do complicado duplipensar afetivo-sexual. Não, aquilo era bom, muito bom. Algo merecido, algo merecido. A fosforescência afrodisíaca de Rosicler era seu bálsamo, seu emplastro Brás Cubas, e ele não se importava com a procedência e veracidade do produto.

No meio da semana, surpreendendo-lhe, ligou Rosicler tarde da noite, um pouco depois de Sérgio voltar de seu jantar no bar:

— Mas, assim, acho que deveríamos fazer de novo, eu digo, o merengue da mitocôndria, eu acho que não deu certo, não conseguimos o resultado desejado, por uma falha na própria concepção, é uma coisa que eu tenho de olhar, com cuidado, falar, com jeito, com o Gláucio. Não gostei dessa passividade da mitocôndria. E se não é o proto-protozoário, o proto-eucarionte que fagocita a mitocôndria ancestral, mas a própria mitocôndria, com agência, por ela mesma, que entra, vai, infecta esse ser, esse ser ameboide?

— Claro, faz total sentido — ele que então concordaria tranquilamente com qualquer pretexto, contexto ou texto para conseguir ter seus encontros com Rosicler. Que ela quisesse falar tão somente dos trabalhos místicos com Gláucio também não o incomodava. A voz dela, assim, gratuita, inesperada, era decerto uma dádiva.

Na sexta se encontraram de novo. O barracão, o túnel, a sala vermelha, a dita meditação dinâmica em quatro passos, o próprio Gláucio, eram elementos agora recebidos com imensa naturalidade. Inclusive, depois da surra da segunda vez, Gláucio deixou de ser um problema. As atividades naquele estranho bunker foram se repetindo no final das semanas, tornando-se parte da rotina de Sérgio.

— Mas, e aí, velhinho? Você continua a sair lá com a turma da magia sexual? — perguntou-lhe Duarte assim que Sérgio apareceu para repor seu estoque mensal de prensado paraguaio.

— Que isso, Dudu? A pergunta não é essa, meu prezado, a pergunta na verdade é como você pode ter pulado fora dessa? Que canal, cara… O canal — devolveu Sérgio de peito erguido, gesticulando amplamente.

— Ah, cara esse esquema de orgia não é a minha não, cara, ahn… Assim, eu sou meio travadinho, sabe? Não, velho, não ri, é sério, eu só consigo mandar ver no escuro, cara, pode ser a mulher mais maravilhosa do mundo, mano, eu tenho de apagar a luz. É, tipo assim, eu tenho de concentrar pra caramba, sabe?, pô, pra tá ali cem por cento comprometido, pá!, sabe?, aí esse trem de luz acessa, a porra daquele cubinho do demônio psicando, a doidera da gincana do sexo, isso é demais para mim, cara, eu… Eu… Ah, velho, assim, cada macaco no seu galho, né?

— Velho, para mim está sendo o céu, uma coisa assim, maior do que uma terapia.

— Pirou na Sibila, né? Ela é uma pessoa extraordinária mesmo…

— Não, velho, eu… Eu estou assim, encantando com a Rosicler…

— Ah, sim, uma pessoa linda também, enfim…

— Mas, cara, onde você conheceu essa turma?

— Eu fiz um trabalho com as duas, de edição de vídeo. A Sibila é produtora cultural, a Rosicler trabalha com vídeo mesmo, a ambição dela é ficar famosa como diretora de videoclipes. Esses não os nomes delas de verdade, a Sibila eu acho que chama Ângela, a Rosicler eu não sei.

— Pô, mas você não sabe mais nada sobre ela?

— Ou, não, sei que ela faz freelas de edição de vídeo, que tem uma coleção imensa de câmeras e máquinas fotográficas, que faz parte desse grupo maluco… Acho que ela fez Comunicação na PUC, ou foi na Federal?, ela era da turma do Coceba?, não sei, velho; como eu te disse, tava mais ligado na Sibila, mas aquela coisa ali de todo mundo junto agora mandando ver me inibe um pouco…

— Entendi…

— E aqui, sem querer te escrotar nem nada, não tem nada errado com você nem nada, mas… Eu não acho que você vá conseguir ficar com nenhuma das duas fora desse rolê…

— Não, cara, é sem erro, absurdamente sem erro, eu… Eu de fato amo esse rolê.

De vez em quando o Dri, irmã mais novo de Sérgio, aparecia de supetão para ver como ia o mano, sempre o descobrindo em apuros. Encantou-se com o irmão lhe atendendo prontamente ao portão de roupas limpas, com a organização de sua casa, com a calma e diligência de seus afazeres, não pegou Sérgio em nenhum aperto, Sérgio estava calmamente, tomando chá e preparando uma aula de conversação para o dia seguinte.

— Pô, que legal, você vai dar uma aula sobre os hobbits?

— Ah, sim, acho que sim, a molecada gosta de fantasia, né?, o filme fez muito sucesso, e, afinal, Tolkien é Literatura Inglesa, então eu acho que está tudo certo — respondeu Sérgio com um sorriso ao mesmo tempo calmo e vitorioso.

— Claro que é, claro. Bicho, legal te ver… Como é que eu falo isso, gente? Você tá bem melhor, cara. Você está assim, quase que… Pô, mano, quase que outra pessoa. Olha, cadê aquela perna perninha balançando?, aquela ponta eterna de baseado no canto da boca?, a cara de corujito?, haha, mano, cê deu uma acalmada boa.

— Pois é, Dri, estou suave na nave. É, eu tô… Tô fazendo terapia…

— Ah, é, psicanálise?, Lacan?, Freud?

— Ou, não ri não, mas é um treco meio assim, tilelê, é… Cromo… Cromoterapia…

— Ah, cara, se funciona, está valendo, não é?

Era também o que pensavam os sócios de Sérgio na escola de Inglês, estavam prontos para o chamar para uma reunião na qual proporiam a compra de sua parte na escola, porque não acreditavam mais que ele desse conta de dar aulas, mas lá ele estava agora, arrancando risadas dos seus alunos, dando aulas com músicas, tocando violão, propondo todo tipo de jogos, calmo, no horário, mais ou menos sóbrio. Bem, ele merecia uma segunda chance, pensaram.

Lúcia também percebeu algo em Sérgio, encontrou-o, num das ocasiões nas quais ia buscar Úrsula, curiosamente diferente, de um jeito bom.

— A Úrsulinha me disse que você colocou um saco de pancadas na área e que cê tá treinando, é sério?, que coisa boa, Sérgio.

— Ah, sim, eu estou… É, treinando, treinando MMA, sabe? Mestre Marombinha? — ele disse, mesmo nunca tendo voltado à academia depois de ter conseguido derrotar Gláucio em combate desarmado.

— Ah, aqui no Bairro, né? Eu já vi. Que legal. Muito legal, Sérgio. Que coisa boa, Sérgio.

Que coisa boa, Sérgio, ele pensou, que palavras tão desacostumadas a estarem juntas, ainda mais assim na voz de Lúcia. Que coisa boa, Sérgio. A dança de borboletas multicoloridas em volta de um montinho cheiroso de bosta de vaca, os padrões da água e da espuma na cachoeira, barulho de cachoeira, maritacas, árvores e arbustos passando rápido, crianças rindo, cheiro de protetor solar, bolhas na garrafa de refrigerante, o movimento incrível das bolhas na garrafa de refrigerante, o balançar de dormir no banco de trás do carro, o cheiro do lençol limpo, luzinhas no escuro, luzinhas piscando, aparecendo e sumindo no escuro, auras áureas e roxas, esverdeadas, espraiando-se no negrume, chocando-se, encontrando-se, misturando cores. Um ardor na língua, de cachaça, de whisky, de fumaça, de fumo, um brilho no olho. Um ritmado ir e voltar, para um mesmo lugar. Um ressoar. Um fluir, riofluir, riocorrer. A poeira no chão, rodando, um redemunho, uma espiral, uma catedral, a via láctea, o micro e o macro cosmos. Sérgio, dirigido por Stanley Kubrick, encontrando a si mesmo velho moribundo e ancião. A beleza da fumaça azul-acinzentada do baseado espiralando, se desfaçando em chumaços menores, rodopiando em volta de si mesmo, escrevendo coisas indecifráveis no ar, mensagens subliminares e paranormais que logo se desfazem deixando apenas um fugidio resquício de memória, expressões faceiras vistas em um sonho, as luzinhas que você vê quando aperta os olhos fechados. Tremeluz. Brilhuz. Rodando e girando, de uma maneira calma, devida, desejável, agradável, brilhuz, tremeluz. Que. Coisa. Boa. Sérgio.

— Que coisa boa, Sérgio.

— …

— Sérgio?

31.

— É, tem de tomar cuidado com isso de consertar telhado. Cê tá novo, mas mesmo assim, tem de tomar cuidado.

No final, não passou de um susto. Sérgio tomou seis pontos na cabeça e foi isso, a tomografia indicava que não tinha nada além do galo e do corte.

— A cabeça é cheia de vasos sanguíneos, muito irrigada, qualquer corte vai sangrar muito mesmo. E é aquela coisa, a sangueira assusta, mas no final não é nada demais. É claro, se você estancar, limpar direito, água e sabão, dar os pontos direito.

De volta em casa, Sérgio contorcia-se diante do espelho no esforço de ver a ferida, mas não conseguia. Tateando, podia senti-la, o corte, os nozinhos da sutura. Estava no alto da cabeça, rodeada de cabelo, ninguém veria, ele poderia participar das atividades do grupo.

— Sarou a boca? Ah, que bom, é o seguinte, sexta-feira, seis horas, dezoito horas, no mesmo lugar.

Agora a presteza e a objetividade dela já não lhe eram suficientes, agora ela soava fria, distante. Ah, Rosicler, por que tão seca, sem nenhuma brincadeirinha, sem nenhum sinal de intimidade. Ai, Rosi, ai, Clê. Ai, Frau Rosenkreuz.

Preparou-se bem dessa vez, nada de trajes sociais, foi com um conjunto de moletom todo preto, uma bota de couro exageradamente pesada, luvas de lã também pretas. Parecia um anarquista diretamente saído de um black bloc. Gláucio lhe lançou um olhar de profundo desdém assim que se encontraram. Mais uma vez, as vestes de Sérgio destoavam: Sandro estava apenas com um calção de jogador de futebol, Sibila parecia a própria Gal Costa na capa de Índia, Gláucio a mesma coisa, de sunguinha, parecendo um jovem Gabeira (só que calvo) e Rosicler Rosenkreuz num maiô que a ânsia de Sérgio julgou pudico demais, uma coisa meio salva-vidas. Estavam todos de vermelho, como antes. O grupo participava de uma festa na piscina para qual Sérgio não fora convidado.

— Todo mundo, fora da água, vamos saindo, enxugando, hoje é sério! Hoje é especial!

Entraram pela porta de trás da casa para guardar as toalhas, o aparelho de som, o cinzeiro e os copos de caipirinha. Voltaram com as mesmas roupas. Gláucio, cerimonioso, esperava-os à porta do barracãozinho. Entraram piscando os olhos na escuridão do barracão. Dessa vez, Sérgio e Sandro levantaram e arredaram o sofá, revelando o portão de fechadura estranha. O subterrâneo os recebeu com seu bafo morno, seu distinto sabor fúngico. Logo estavam então na sala. Na sala vermelha. Na sala laranja, com resquícios do dia que fora vermelha. Dessa vez o baú com os protetores estava lá. Não precisou nenhum comando, Sérgio o abriu de imediato, já escolhendo suas peças, preparando-se para o embate. Os demais o seguiram, mas iam se montando lentamente, casualmente, sem a determinação de Sérgio, cujo olhar faiscava, de um suposto amor por Rosicler, de certo ódio por Gláucio. Quando todos terminaram, o cromoterapeuta começou a liderar os trabalhos.

— … mas aí ela disse assim…

— Gente…

— … eu não acredito que…

— Opa, minha gente, vamos lá…

— …

— Pronto? — Gláucio então fechou os olhos, facilitando a lembrança das palavras decoradas. Recitou-as tonitruante, teatral, demoradamente:

— Hoje, hoje, hoje! É o casamento do rei, nascestes para esse dia, fostes por Deus escolhido para a alegria. Vás até a montanha, onde estão os três templos, e veja ali a história. Fique atento! Inspecione a ti mesmo! Se não banhares direito, o casamento pode ser a sua ruína. A ruína vira aquele que falhar. Que fique avisado o leviano.

Enquanto Gláucio conduzia a recitação, Sérgio, em uma tentativa de ser intimidador, copiou alguns pontos do alongamento de Mestre Marombinha, colocando o queixo ora em um ombro, ora em outro; girando os ombros para frente e depois para traz; pressionando os braços contra o peito; tentando risivelmente encostar nas costas, no espaço entre as escápulas; girando a cintura. Não tirava os olhos de Gláucio, esperando como da outra vez, o comando para que começasse a pancadaria.

Gláucio continuou, falando agora de forma solta, de improviso:

— Bem, como da outra vez, vamos antes do casamento alquímico, do nosso potente experimento alquímico pela via úmida, proceder com o banho, a nossa sagrada, nunca deixada de lado, meditação propedêutica em quatro passos… Quatro passos de saneamento, de uma limpeza mental, espiritual profunda… — ao que Sérgio ia girando a cintura, como se lançando um bambolê invisível.

— Vamos então, meus caros, meus seletos poucos, vamos pensar naqueles que nos trouxeram dor, vamos imaginar quem nos fez sofrer, vamos pensar nas injustiças, no amargor das injustiças e por quinze minutos deixa aflorar a nossa raiva, vamos dei-

A fala de Gláucio foi interrompida por um passo, quase um tropeço, de Sérgio, seguido por um soco louco, um punho rodando desleixadamente que, dada a inexistência de técnica também por parte de Gláucio, pegou na têmpora do cromoterapeuta, de jeito o suficiente para jogá-lo ao chão. Caído, Gláucio, esperando Sérgio vir montá-lo, começou a espernear com nervosismo. Sérgio foi como se os chutes não existissem, e, como eles existiam, tomou um bocado de pontapés no rosto. O protetor impediu que se cortasse, que sangrasse, que a pele fosse por demais punida. Aguentou, tomou aqueles coices e seguiu firme, agarrava as pernas de Gláucio, tomava chutes e as soltava, voltando a segurar o cromoterapeuta, perdia-o e apanhava. Numa dessas foi com tudo, avançando com uma cotovelada que retumbou na coquilha de Gláucio. Superou as pernas, estava em cima do danado. Encurvou-se completamente, agarrou Gláucio pelo protetor de peitoral e começou a bater seu capacete no capacete do homem que, por sua vez, batia no chão.

— E agora, seu filho da puta, e agora?

Deu então uma cabeçada tão tremenda em Gláucio que ficaram os dois abobados, aturdidos, mas ainda agarrados em luta corporal. Eram como aqueles veados que depois trocarem galhadas se enroscam e são pateticamente forçados a encararem o inimigo até conseguirem desemperrar os chifres. Tiveram de ser separados pelos demais — que, ao contrário dos dois, encerram a atividade prontamente assim que Sibila deu o aviso que os quinze minutos de raiva e agressão deveriam acabar — Sandro puxou Gláucio para um lado, Sibila arrastou Sérgio para o outro. O professor de inglês ia retomando a respiração. Apesar do tanto que apanhara, considerou-se o vencedor daquela peleja.

Depois de alguma demora para se levantar, Sérgio caminhou triunfalmente até Rosicler e começou a remover seus protetores, ostensivamente checando seu corpo, puxando as mangas do moletom, baixando as meias. Pediu que Rosicler verificasse seu rosto:

— Dessa vez, vessa vez eu me machuquei? Tá… Tá alguma coisa sangrando?

Rosicler, com as faces ruborizadas em razão da altercação pugilística que tivera com Sibila e Sandro, os olhos ainda no modo luta, faiscando, pegou Sérgio pelo queixo, como quem pega uma criança muito pequena a quem vai se ministrar um remédio via oral ou como quem abre a boca de um animal doméstico, e, forçando-o a se abaixar com a leve torção de sua mandíbula, enfiou o indicador e anelar na sua boca, passando-os pelos dentes e pela gengiva de Sérgio.

— Parece que está tudo bem dessa vez — respondeu-lhe Rosicler, enxugando a mão molhada de saliva na manga de Sérgio com um muito sútil, porém ainda claramente perceptivo, desdém. Sérgio ficou decepcionado, esperando um gesto mais íntimo, uma coisa sexual.

Gláucio, depois de tantas pancadas na cabeça, pediu para sair. Foi para o banheiro que Sérgio descobriria depois que havia na sala verde e de lá todos puderam escutá-lo vomitando. Quando voltou para a sala vermelha — com o entorno da boca meio molhado, os olhos avermelhados e uma expressão de perdido na face — , os demais, que limpavam os protetores com borrifadores esterilizadores e lencinhos umedecidos desinfetantes, questionaram-no com olhares. Sandro expressou-se claramente:

— Dr. Gláucio, o senhor… O senhor está bem? Não seria melhor adiarmos a execução do…

— Não, não, Sandro, tudo certo, é do experimento … — ele disse enxugando a água do seu rosto, reminiscente do instante anterior, quando lavava o rosto — É assim mesmo, essas coisas acontecem. Da outra vez foi o nosso colega Sérgio, dessa vez fui eu quem se machucou um pouco. Mas não foi nada grave não, nada que se traduza a um risco às nossas atividades.

Foi então descendo, assentando-se no chão de pernas cruzadas:

— Vamos agora abrir espaço para as manifestações da bile negra, vamos deixar a tristeza, a melancolia nos tomar, vamos nos concentrar no baço, no spleen. Chorem, meus colegas, meus discípulos, chorem, uivem, gemam de dor! É hora de sentir o desassossego mais brutal, o desalento total, o abandono completo.

Mas Sérgio sentia só vitória, uma vitória completa, triunfante, sobre aquele que ousara ser um obstáculo entre ele e a mais nova panaceia para sua condição, Rosicler. Teve então de fingir, encolheu-se todo e ficou com a cabeça encostada na parede, fingindo que a batia contra os tijolos. Chegada a fase do silêncio, da total imobilidade, Sérgio apenas desenrolou suas ataduras de boxeador, descalçou o coturno e se deitou e lado, ainda virado para a parede, imaginando como seria tocar de novo a pele de Rosicler, beijá-la, senti-la toda.

Foi então correndo direto para ela quando começou a quarta fase, fase da meditação, a fase de ser feliz, dos folguedos, da gritaria alegre. A recepção de Rosicler parecia total, mas, Sérgio não pode deixar de notar, tinha alguma coisa de artificial. Ela olhava direto em seus olhos, sorrindo, dando a entender o tempo todo que prestava atenção nele, no que dizia e fazia, abraçou-lhe, dançou rodopiando de mãos dadas com ele, chamou várias vezes pelo nome Sérgio, Sérgio, Sérgio. Ele se regozijou muito, mas não sem a dúvida de que aquilo fosse apenas um teatro, Rosicler estava tão somente participando dos ritos daquele grupelho místico, a performance dela era intensa, mas não era nada pessoal. Era isso? Era mesmo? Ou era apenas Sérgio, acostumado a ser preterido, custava a crer no agora, numa mudança de sua sorte? A suspeita lhe perturbava, fora tão difícil estar ali, participar daquilo, e agora essa maldita pulga lhe tirava a fruição plena da situação.

— Agora parem, simplesmente parem, fiquem como estão, assim, está ótimo. Perfeito. Fiquem assim, vou buscar o cubo. Não façam nada. Não vamos perder o produto de nossos trabalhos até aqui. Não vamos perder a nossa purificação.

— Bem, todos, bem, com exceção de Sérgio, ahn, Sérgio, vamos lhe explicar isso depois, mas bem, nós aqui sabemos dos problemas que tivemos da última vez que conduzimos esses experimentos com esse fito… Ahn, de conjurar, de criar, um ser, um ser no éter, um bebê astral. Então, vamos continuar usando o cubo, a frequência Heinlein, mas… Vamos com cuidado agora, vamos em passos pequenos… Passinhos de bebê… Então, para continuarmos indo com segurança eu criei um procedimento, uma liturgia, chamada o Trabalho Mereschkowski. A Árvore da Vida de Mereschkowski é cabalística… Nos vamos fazer agora então…

— A dança do plastídio!

— Não, isso foi semana passada, vamos fazer hoje algo diferente, uma consequência da dança do plastídio, um passo adiante… Hoje vai ser o merengue da mitocôndria…

Ao que todos, com exceção de Sérgio, agacharam-se quase que de cócaras e começaram a dançar ora apoiando-se sobre as coxas, ora balançando-se em vigorosos movimentos pélvicos, mexendo os braços em sequências rápidas que pareciam coreografadas. Olhando para os lados, e a essa altura eu acho que não preciso continuar reforçando mais toda a parte do sem jeito, Sérgio tentou acompanhar seus desenvoltos colegas. Seguia principalmente Rosicler, encantando com a suavidade da linha de seu maxilar, a delicadeza de seu nariz empinado. Ela continuava olhando e sorrindo para ele, e agora ele conseguia acreditar ou fazer de conta que acreditava, que era uma coisa pessoal e profunda, com ele, ele Sérgio. Quis se aproximar dela, envolvê-la nessa dança doida, mas era contra a planejamento de Gláucio.

— Não, não, separa, separa, tem de separar, Rosicler vai para lá, vai. Rosenkreuz!

Respondeu Rosicler, ainda agachada como os outros, parecendo alguém imitando um caranguejo [ou a base mabu do kung fu (ou a base kiba-dachi ou naihanchi-dachi do karatê)], rodopiando feito em volta de um eixo perfeitamente centrado em sua coluna acertadamente ereta, ao mesmo tempo deslizando para a esquerda, afastando-se do grupo.

— Isso, isso. Agora, um instante, iniciando a frequência Heinlein aqui. Um, dois, foi. Vocês cá, isso, vocês agora vão ficar todos juntos, suave, numa pessoa só, um ser somente, suavemente, vocês serão como órgãos, suave, órgãos apenas, sem autonomia, organelas, suave, vocês agora vão começar um incrível processo de regressão, suave, vocês serão organelas de uma célula, suave, uma regressão tremenda, vejam só, agora suavemente, você vão, suavemente, olha só são apenas organelas, vejam só, um ser unicelular, vão são, suave, uma célula, suavemente. Rosicler, você agacha e rebola para lá, você está fora. Isso, brilhante, vai rebolando aí, Rosicler, isso, brilhante, vocês agora, o ser que vocês são, esse ser único. Vocês estão bem unidos? Um ser só? Esse ser está com fome, isso, ele precisa comer? Como ele come? Ele fagocita, fagocita. Faaagocita, meu amor, faagocita; faagocita meu amor, a minha vida. Tá que tá ficando, tá ficando muito legal. Suave. A membrana há de se abrir e pseudópodes se formarão, isso, isso… Chegando perto agora de Rosicler… Faaagocita, meu amor, fagocita…

Diante de um Sérgio abobado, treinado na frente de uma tela, banhando em luz azul, inábil diante do sexo-sexo, a coisa ela mesma, Sandro e Sibila, mais uma vez, tomaram-no com alvo de suas explorações erógenas. Enquanto os quadradinhos coloridos da frequência Heinlei explodiam dançando e rodando por toda a sala, interpretou o casal a ordem de Gláucio de se transfonarem em um ser só como mais um sanduíche humano, os dois espremendo vigorosamente Sérgio, Sandro lhe masturbando com duas mãos e Sibila fazendo shiatsu em seu períneo. A membrana protozoária se abrindo em pseudópodes famintos, fagocitantes, era o próprio Sérgio, fazendo caretas horríveis, ainda que de prazer, encurvando-se e tentando se esticar para encostar em Rosicler com dedos curvos como garras.

— Rosicler, calma, ainda não, você é também um ser, suave, um ser unicelular, isso, suavemente, mas você não é um ser qualquer, você é a mitocôndria em sua vida antes da assimilação, não uma organela, uma mitocôndria livre, autônoma, energética. Cadê a a energia? Agacha, Rosenkreuz, rebola, rebola. Energética! Dinâmica! Isso, bate o cabelo! Você é a chave da vida! Você é o catalisador da grande revolução filogenética! Isso, requebra! A mitocôndria ancestral, livre, leve e solta em todo seu esplendor! Isso, suave!

Rosicler era então a própria muriçoca doida, sintetizando dezenas de coreografias de axé e pagode, encaixando-as harmonicamente num esvoaçar que assanhava e bambeava Sérgio. Seria ela o amor de sua vida? Ou seria ela uma incrível, perfeita, atriz, dançarina e cantora? Que fosse. Que fosse tudo. Que fosse tudo engano. Me engana então, me engana, pensava Sérgio. E quando não pensava assim, pensava que era de verdade, e aí nem mais pensava, sentia como se fosse de verdade, sentia que era verdade.

— Agora, isso, ainda no ensejo da fagocitose, a membrana se projeta em pseudópodes e abraça, e pega, e engole, a mitocôndria ancestral, isso, agachem, rebolem, suave, a mitocôndria se debate, rejeita, gente, gente, com cuidado, só um teatrinho, isso, suavemente, isso, a mitocôndria debate no vacúolo digestivo, não quer ser comida, digerida,agora, começam a se dissolver os eus desses seres, ó, que momento mágico, a concepção sagrada dos eucariontes! A simbiogénese! A endossimbiose! A mitocôndria agora um endossimbionte, uma parte desse novo ser! É o despertar de uma nova era, senhoras e senhores! Isso, suavemente, isso, suave. Isso, continuem assim. Isso, suave! Agora, que momento lindo, é o toque de Vênus, fazendo os seres se propagarem, viajarem no tempo, por meio de gerações e gerações, a gestação de tudo, a geração,a gestação, o gesto e o gerir!

30.

Influenciado pelo que vira de Lúcia no clube, Sérgio decidiu que treinaria para confrontar Gláucio, o cromoterapeuta ciclópico. Ainda caminhando para casa, voltando da sua tentativa frustrada de conversar com Lúcia, de aproximar-se — ai, que ridículo, que patético, pensava agora — de voltar a ser íntimo de Lúcia, lembrou-se da pequena garagem que por várias vezes vira na entrada do bairro, sobre a qual havia uma faixa de lona com os dizeres Academia de MMA do Mestre Marombinha. Agora não, que ele realmente queria era terminar aquelas latinhas de cerveja, comprar mais umas outras, triturar umas drágeas de Ritalina e ir mandando umas linhas enquanto se acabava no MMO. Amanhã, porém, seria outra vida, com certeza, amanhã ele seria um outro Sérgio, o Sérgio do MMA.

Causando muito espanto a Sérgio, tal plano, diferentemente de tantos outros, malfadados, nunca abençoados com a luz do sol, ainda estava vivo no dia seguinte, quando ele substituiu seu usual café da manhã — uma ponta de baseado da noite passada, dois cigarros e depois um cafezinho da saleta dos professores — por um ovo cozido e duas bananas que, naturalmente, ele não tinha em casa, teve de sair para comprar. Quis fazer do cozer do ovo um exercício de clarividência, aquele ovo, mole, porém integro, de gema dourada, era um sinal, já que os raros ovos cozidos de Sérgio tendiam a ser desastrosos, com cascas quebradas ainda na leiteirinha, pedaços de clara e gema girando soltos na água fervendo, formando feiosos tentáculos de um branco às vezes translúcido e dum amarelo pálido. Aquele ovo, porém, era um novo Sol, uma nova estrela, um novo signo sob qual viveria Sérgio. Assim pensava. Deu as aulas do turno da manhã, como sempre, alheio: imaginava-se, como quase todo neófito empolgado, descobrindo-se muito bom em algo que nunca antes treinara à sério. Era ele encurtando a distância com jabs elétricos, chegando perto dos seus adversários somente para derrubá-los com projeções elegantíssimas, cobrindo-lhes então a fuça de murraças triunfais. No almoço, uma inovação, havia coisas coloridas no prato de Sérgio, era ela mesmo, a tal da salada. Quem seriam meus colegas? Imaginava tipos, personalidades, já estava inventando diálogos. Haveria um boxeador loiro, forte, pateta e jovial, de mullets; um espartano judoca, sansei, de longos cabelos sedosos; uma capoeirista contorcionista, esguia e de uma verve ácida. Divagava. Transformou as aulas da tarde em exercícios de conversação ficou com seus alunos falando o dia inteiro a respeito de Bruce Lee, Mike Tyson, Anderson Silva, Lyoto Machida, do Templo Shaolin, de ninjas.

Findo o expediente, rumou firme para a academia de Mestre Marombinha. O incrível casting imaginado quando no almoço, claro, não estava lá. Das vezes anteriores, nas quais apenas passara rumo sua casa no seu passo arrastado, Sérgio tinha visto a figura de Mestre Marombinha. A sua lustrosa careca, seus musculosos ombros salientes, sua indelével sombra de cavanhaque, suas orelhas curiosamente pontudas e o calção apertado lembravam o Panthro dos Thundercats. Entrando na Academia, a primeira coisa que Sérgio percebeu foi que Marombinha era muito desenvolto, seguro, tinha olhos que seguiam cada movimento, do interlocutor, captando todo o redor de forma com a visão periférica. O jeito que ele andava, falava, colocava a mão na cintura, sei lá, pensou Sérgio, esse cara viu muita porrada. O discípulo de Marombinha, seu único discípulo, era um sujeito jovem, porém careca, de profunda olheiras, meio gordo, meio forte, de apelido Toucinho, pronunciado, muito naturalmente, Tôcin. Toucinho parecia um tipo mal encarado, um hooligan, mas a tatuagem do retrato de Jigoro Kano no seu ombro esquerdo indicavam, em tese, alguma adesão à suavidade. No exato momento em que Sérgio o conheceu, ele estava como que abraçado a um grande saco de pancadas, as mãos juntas, amarradas com uma grossa faixa preta de judô, de tal forma que ele não pudesse soltar o saco de pancadas. Nessa posição, desferia contínuas joelhadas, alternado o erguer da perna direita e da perna esquerda. Os joelhos de Toucinho estavam esfolados, róseos com pontinhos vermelhos.

Duzentos jabes, duzentos diretos — gritou Marombinha, desamarrando as mãos de Toucinho, que seguiu acertando socos estrondosos no saco de pancadas.

— O Toucinho é um profissional da projeção, queda, do chão, da submissão. Um cara do judô, do wrestling. Agora ele está aqui pegando a parte de trocação comigo. Esse cara vai fazer carreira no mundo da luta, cê vai ver só.

Toucinho grunhia e socava, de olhos cerrados, completamente entregue ao exercício.

— Mas, e você, meu caro? Você está procurando o que? É uma questão de ficar em forma, ou é um interesse pela defesa pessoal, ou talvez você queria sentir um pouco do gosto do esporte de combate, do MMA ele mesmo?

— Então, mais uma coisa de defesa pessoal?

— De se impor? De se garantir? De sair de um soco, de findar a luta com um soco? — Marombinha gingava como se deslizando suavemente, circundando Sérgio, fintando-o com socos que paravam a centímetros do queixo, da mandíbula, da têmpora do professor de inglês.

Sérgio considerou que seria impossível revelar ali todo o contexto de sua súbita necessidade de se tornar um grande porrador, ou, a bem da verdade, em alguém minimamente apto a figurar numa luta sem ser rapidamente subjugado. Simplificou a questão:

— Pô, é que eu me desentendi com um conhecido num bar, nós tivemos um entrevero… O cara foi injusto comigo, sabe? Me deu um safanão, eu… Eu não quero confusão não… Não quero ir lá falar com ele e limpar meu nome não, nada disso… Pô, é que eu fiquei sem jeito…. Pô, sem coragem mesmo de voltar lá… Tá me faltando coragem… E se o cara partir na mão de novo? Tem uma mina, tem uma moça, uma mulher, na real… Que vai lá… Pô, eu fico querendo… É… Trocar uma ideia com ela… Mas não rola, não rola por conta desse cara, que eu… Que eu tenho medo dele bater em mim.

— A não, meu caro, o senhor não poderia ter buscado outra academia, eu vou te colocar no jeito, você vai ver, tromba homem nenhum mais vai ser problema para você, muito pelo contrário, você vai ser o próprio tromba homem — disse Marombinha acertando um sonoro tapão no peito de Sérgio.

O aquecimento padrão de Mestre Marombinha, porém, nada muito complicado, foi suficiente para arriar Sérgio. A sequência de polichinelos, agachamentos, flexões e alongamentos fez com que ele suasse profusamente, perdesse o fôlego várias vezes e gemesse de um jeito débil. O cansaço foi tanto que Sérgio quis acreditar que era isso, a aula terminava ali, mas logo Marombinha disse:

— Beleza, respira, toma um águão, que agora vamos para a parte técnica.

— Ou, num sei se eu dô conta não, sô… Na moral…

— Na moral, novato, tá escrito ali ó, Mestre Marombinha. Marombinha sou eu, eu sou o Mestre. Fechou? Parte técnica, vamos lá, prestenção.

Marombinha então instruiu Sérgio a separar bem as pernas, a jogar o centro gravitacional do corpo mais para baixo, flexionando levemente os joelhos, a erguer as mãos em guarda, a proteger o queixo quase que colando-o ao peito, enfim, os rudimentos da base e da guarda do pugilismo.

— Agora me dá um jabe, Sérgião.

— Ahn?

— Pô, homem, um socão com a mão da frente, vai, vai.

Ao que Sérgio respondeu com um pombo sem asa troncho, um soco curvo, errático, indisciplinado. Marombinha ficou então minutos mostrando como ele deveria golpear de forma direta, rápida, o braço avançando com o cotovelo para baixo até o último estante, até a torção de pulso no final da trajetória.

— Assim?

— Não, não, olha, é, pam!, é direto, é rápido.

— Assim?

— Não, não, é um estalo, é afiado, uma estocada, pam!, seu punho no queixo, na mandíbula, pam!

— Assim?

— Não!, não!, a distância mais curta entre dois pontos é uma reta!

— Assim?

— Não, é ó, pam!, tem de ter efeito, tem de derrubar um homem!

— Assim?

— Nossa Senhora, isso não derruba ninguém não!

— Assim?

— Pensa que é um ato de atletismo, pô! Bota raça nisso, velocidade, força!

— Assim?

— Pensa que é uma questão de vida ou morte, rapaz!

— Assim?

— Cê tá morto já, Sérgião.

Marombinha repassou a técnica e deixou Sérgio golpeando o ar e foi cuidar do treino de Toucinho. Sem a supervisão de Marombinha, Sérgio começou a fazer corpo mole, colocando intervalos entre cada golpe, não conseguia levar a sério o exercício, não conseguia se entregar, tinha total consciência do que a sua performance tinha de ridículo (como são naturalmente ridículos, inelutavelmente ridículos, todos os inícios), mas zero consciência corporal, estava concentrando-se na coisa errada. Marombinha, ainda prestando atenção em Toucinho, lançou um olhar de desaprovação que fez com que Sérgio tentasse se concentrar. Fez vinte socos com cada mão e foi contar o instrutor.

— Vinte? Faz cem, duzentos, faz até eu te falar para parar.

Marombinha mandou parar só ao final da aula, quando Sérgio já tinha os braços doces.

— E aí, eu peguei? Eu tô pegando?

— Não, mas é assim mesmo.

— Amanhã é que horário?

— Não, amanhã você descansa, que amanhã você não vai estar dando conta de nada!

A terceira aula foi do mesmo jeito da segunda, que foi do mesmo jeito da primeira: Sérgio ficou estudando a forma do seu jabe, dando socos no ar, o que lhe entediava imensamente. Sentia a etiqueta da camiseta coçando a nuca, o elástico da cueca fisgando a nádega, as manchas de suor colando a camiseta na pele, as meias de mangas frouxas roçando e coçando as canelas. O único conforto era ter passado o aquecimento, ter sobrevivido ao aquecimento.

— Ô, Marombinha… É… Mestre… Quando que eu vou lutar?

— Lutar, Sérgião? Ainda não.

— Pô, Mestre, eu tenho de bater… Eu tenho de bater em alguma coisa. Extravasar.

— Olha, Sérgio, você vai se machucar, vai arrebentar a sua mão se você socar qualquer coisa, você ainda não pegou a forma. É… Assim, foi mal, velho… Você ainda não pegou nada.

— Pô, eu…

— Vai, jabe, cem com uma mão, troca, cem com a outra…

Lá pelo fim do horário Marombinha condoeu-se e deixou que Sérgio socasse um aparador segurado por Toucinho. Antes, porém, Marombinha enfaixou os punhos de Sérgio e fez com que ele calçasse luvas de boxe.

— Olha, Sérgio, você tem que bater conectando só os ossos aqui da base do indicador e do dedo médio, senão quebra o punho, concentra nisso.

Sérgio porém concentrou-se apenas em projetar no aparador a cara de Gláucio, o cromoterapeuta dracônico, aquele varapau maldito. Foi espancando o aparador sem controle, berrando, gemendo, no final babando. Toucinho ficou surpreso:

— Uai, inté que o homem bate, olha só.

Sérgio rugia, virava os olhos de raiva, golpeava loucamente, Toucinho ria, gargalhava, incentivava:

— Vai, sô, mata o homem!

Quando Sérgio perdeu o fôlego, Mestre Marombinha terminou a aula. Sérgio não se lembrava de um dia ter sentido daquele jeito: seu peito e seus braços nunca estivaram tão injetados de sangue, seus músculos nunca tão tensos, seus punhos nunca tão cerrados, tão densos. Ele demorou na Academia, queria agora estar ali entre iguais, respirar o mesmo ar de Marombinha e Toucinho, queria sentir-se ao máximo um lutador. Aquela inhaca azeda, aquele miasma bacteriano de academia, era então uma consagração. Os apertos de mão, os tapinhas no ombro, os meios abraços: comemorações de feitos épicos. Sérgio entre Titãs. Nós os seletos felizes, nós, bando de irmãos. Sérgio era, Meu Deus, Henrique V então. No caminho escuro para o bar do Nivaldo ele ia avançando como que lutando, fazendo baixinho com a boca o som do impacto dos golpes, os gemidos de dor do adversário imaginário, os gritos do corner, os apelos de uivos da plateia, o riff de Eye of the Tiger. Chegou no bar e ficou ali alegre demais, de peito aberto, falando com todo mundo.

— Ih, Sérgio tá cheirado de novo.

Mas não estava, havia sido apenas um, raro, contato com o próprio corpo. No dia seguinte, mesmo tendo acordado cheio de dores, não conseguia parar de pensar na e experiência. Quase que involuntariamente, como uma criança agitada, começava a dar soquinhos no ar. Lembrava de Gláucio, da cara, do maxilar, do queixo de Gláucio como alvo. E em Rosicler Rosenkreuz. Rosicler gargalhando, girando de peruca prateada em sua mente.

Foi ao shopping, gastou uma grana, voltou todo sem jeito, carregando um monte de coisas, era luva de boxe, caneleiras de Muay Thai, dois alteres, um saco de pancadas. Montou um circuito do lado da máquina de lavar. Pulava corda com a mangueira, dava caneladas no batente da porta, levantava os alteres, esmurrava entusiasmado saco de pancadas. Passou o final da tarde inteiro fazendo isso, ainda que com pausas para comer, ir ao banheiro e fumar seu inafastável cigarrinho. Quando logo fraquejou, buscou força na raiva, na vontade que tinha de bater em Gláucio. Foi então ficando vermelho, as veias na sua testa uma coisa obscena, rangendo os dentes, babando, quase espumando, marretando o saco de pancadas, rugindo.

No último soco que deu, a estocada derradeira antes de ceder, de morrer totalmente o fôlego, o canto do cisne, o coup de grace, golpe acompanhado por um sonoro grito articulado, o saco de pancadas, que não estava assim tão bem afixado ao telhadinho da área da máquina de lavar, foi projetado rumo a parede, arrancando subitamente um pedaço de madeira da sustentação do telhado, derrubando um tanto de telhas bem na cabeça de Sérgio. Numa fração de segundo, Sérgio viu as telhas caindo como que em câmera lenta, enquanto em vão tentava se mexer, seu cérebros e nervos estavam como que em chamas, mas seu corpo era como geleia. As telhas iam caindo, na cabeça dele, e não havia nada que ele pudesse fazer. Ao contrário do que imaginou, as pancadas não lhe derrubaram, descobriu-se desperto, de pé, ainda que agachado, tentando sentir a cabeça, ignorando que ainda estava com as luvas de boxe. No alto de sua cabeça, do meio de seu couro cabeludo, emergiu um galo, rachado no meio. Em pouco instantes o sangue dessa ferida empapuçou o pouco cabelo e escorreu pela testa e sobrancelhas de Sérgio, que caiu de bunda no chão, num choro agudo.

29.

Se já estava com Lúcia na cabeça antes, aquela breve visita — que em verdade não era visita nenhuma, era simplesmente Lúcia buscando Úrsula — fez com que Sérgio ficasse verdadeiramente vidrado. Passou o dia todo bastante aéreo, executando todas as tarefas de maneira distanciada, desinteressada, automática. Repassava cenas na sua cabeça, vivências suas com Lúcia, momentos de ócio, de deleite dos dois: os amenos passeios etílicos em Ouro Preto e Mariana; as trilhas e cachoeiras na Serra do Cipó e em Conceição do Mato Dentro, as incursões lideradas por Diogo, o pai de Lúcia, aos sebos e livrarias de São Paulo, as duas ou três vezes na qual foram ao Rio. Lá pela hora do almoço, lembrou-se do primeiro trabalho de tradução que os dois encararam e a leveza com o qual o executaram, ainda que tivesse sido um esforço danado: em dois dias legendaram uma temporada inteira de uma série estadunidense. A vida então era um fluxo, um ir, o cair de uma cachoeira, uma coisa natural, pensava. Havia esforço, mas não era essa coisa enjoada de agora, esse contínuo horror orvalhado sobre as coisas mais banais. Era o amor? Era Lúcia? Ele queria aquilo de volta. Estava determinado então a encontrar Lúcia, conversar com ela. O que exatamente ele iria dizer? Não sabia, gostaria de dizer várias coisas, mas não sabia nem por onde começar. Somente lhe viam à cabeça os clichês, os grandes chavões de novela, de filme estadunidense, da poesia ruim, dos cartões de dias dos namorados. Conseguia imaginar a careta que Lúcia faria para essas besteiras, a tentativa dela de se esquivar de forma fria e elegante da situação vexatória. Mesmo assim não consegui parar de pensar em ir vê-la.

Encontrá-la seria extremamente fácil. Lúcia estaria no clube, treinando seus movimentos; Úrsula a poucos metros dali, na natação com com tia Joana. Depois da separação, nunca ousara adentrar esse espaço, interferir nessa rotina, esse ciclo virtuoso da vida de Lúcia, mas tudo estava ali, perto, extremamente fácil, tangível. Findo o expediente, ele saboreava a nostalgia daquele caminho, ou cronalgia, para sermos mais específicos, já que a saudade não era do lugar, mas de quando aquela lugar era permitido, quando eram eles dois, Sérgio e Lúcia. As grades pintadas de azul royal, lentamente devoradas pela ferrugem, o jardim cheio de helicônias, o porteiro de camisa social puída e amassada, tudo lhe recebeu com enorme tranquilidade.

— É… Eu vou ali no kung fu.

Claro, vai lá, meu filho, foi a resposta, em formato de sorriso. Sérgio passou pelos vetustos adeptos da sinuca na sala de jogos; pela lanchonetezinha e seu indefectível cheiro de gordura rançosa; pela máquina maravilhosa, uma relíquia, rodando Cadillacs and Dinosaurs, e, antes das piscinas, mas perto o suficiente para sentir o cheiro de cloro e escutar o barulho das mãos e pés contra a água, virou à esquerda, na entrada do ginásio.

Esguiou-se por detrás da penúltima linha de assentos e ficou ali sentado, encurvado feito uma gárgula. Lá embaixo, na quadra, Lúcia, de luvas, caneleira e protetores nos pés, ia cadenciando golpes nos aparadores que sua treinadora segurava recuando. Os movimentos eram fluídos de uma maneira quase hipnótica: ela não arrancava, não carregava, não dava nenhum sinal antes de ir, só ia, como se naturalmente se comprimindo e se estendendo — uma tenção pura, aparentemente sem tensão — até a entrega: um movimento findando num golpe sonoro, uma batida que retumbava por todo o galpão. Uma ritmo que seguia cheio de cortes, de breques, de variaçõezinhas para numa luta pegar o adversário enganado. Elas iam e voltavam, nessa batida quebrada, um kung fu cheio de malícia, por toda a extensão da quadra. Só de ver, Sérgio já sentia fisicamente cansado. As batidas iam ecoando, cada murro uma mangualada direta, cada pontapé um cajado que ia sibilante cortando o ar.

— Mãe! — Gritou Úrsula entrando no ginásio correndo, seguida por Joana em seu conhecido passo macio. Sérgio encurvou-se ainda mais, sentindo-se péssimo, um predador, um caçador, uma figura sórdida preparando uma armadilha. Ai, não, pensou, eu não posso, projetar essa sombra sobre ela, ai, arrastá-la pra minha lama, não. Enquanto Lúcia jogava Úrsula para cima e Joana conversava com a treinadora; abaixado, como um vampiro escapando do nascer do Sol, Sérgio saiu do ginásio, e então, ligeiramente menos afetado, do clube.

Na padaria da esquina comprou quatro latas de cerveja, logo abrindo uma, e foi andando para casa. Não, ele não podia voltar para Lúcia, seria injusto, seria uma maldade, ele não tinha esse direito. Lá ela estava, levando a vida dela depois de tanta babaquice, de tanta vacilação e erro por parte dele. Não. Ela merece coisa melhor…

O primeiro gole de cerveja. Ah, fosse a vida só isso. Só esse gosto fugaz do primeiro gole de cerveja. Deus, hmmm. Sentiu então que a gengiva parecia ter sarado. Esfregou a língua contra o local onde estaria a ferida. Sarado. Ele tinha sarado. Era isso. Rosicler. Voltaria ao grupo, iria atrás de Rosicler. Era isso. Mas e Gláucio? E Gláucio, gigante, descendo-lhe a porrada?

28.

— Lú… Lú-cia… Ei, isso é para a mamãe?

— Não, isso é meu, me dá isso aqui, Úrsula…

Ele tirou os papeis da mão da criança num gesto ríspido e andou em direção ao seu quarto, encurvado, como se protegendo com os ombros aquilo que as mãos apertavam. De porta fechada, rasgou tudo meticulosamente, em retângulos fininhos.

— Que merda…

Queria desaparecer, desaparecer completamente, de uma forma suave e indolor. A dor de cabeça da ressaca o assaltava de tal forma que qualquer ruído, qualquer fala, qualquer coisa era um suplício. O resultado era o pior possível, pensava, estava sendo sendo seu antípoda, seu nêmeses. O próprio Dr. Esdras Taveira, o adulto desadequado com crianças. O pai chato. Muito chato. Traumaticamente chato.

— Úrsula, será que você consegue ficar vinte minutos quieta? Será? Se você conseguir ficar vinte minutos, vinte minutos no relógio, sem fazer nenhum barulho, nenhum som, eu juro, eu juro, eu te dou um prêmio.

— Prêmio… — Úrsula disse sem projetar ar, jocosamente, somente mexendo seus lábios. Saiu na ponta dos pés, os braços recolhidos, parecendo um um tiranossaurozinho, feito um desenho animado. Foi para o quintalzinho. Sérgio fez café e ficou sentado na cozinha, tomando café puro, fazendo caretas, tendo dó de si mesmo.

— Vinte minutos, vinte minutos no relógio!

Ele tirou uma banana da fruteira e jogou na direção da menina. Úrsula não fez nada, nenhum um só movimento. A banana caiu no chão, diante dos pés dela. Úrsula olhou com uma cara horrível para ele, uma cara muito séria, de genuína decepção. Foi para o quintalzinho correndo. Sérgio podia escutar os solucinhos dela lá fora.

— Úrsula!

Ela não veio. Chorando baixinho no quintal.

Sérgio esfregou a cabeça, segurou seu próprio choro e foi para o quintal:

— Úrsula, desculpa, o papai está doente…

A cara da menina ficou branca. Automaticamente parou de chorar, começando a fungar, puxando o catarro.

— Não, filha, nada sério não, é só dor de cabeça, o papai precisa de ficar quietinho… Mas, eu, eu vou fazer comida para você… E… Depois…

— Desenhar, desenhar, bem quietinho!

Tacitamente ela o perdoou. A diversão foi então não fazer barulho algum, ela apontava e fazia língua quando o pai fazia algum barulho, como quem diz, perdeu. Sérgio preparou o café da manhã da filha displicentemente. Depois foram para a sala de televisão, onde ele dormiu de braços cruzados em cima da mesa, enquanto Úrsula o retratava assim, combalido, em creiom. Desenho no qual depois ele viu um homem desabado, uma serra erodida, um monstro de Camões.

Foram almoçar fora, pizza, ali no bairro mesmo. Na volta, na pracinha, ela ficou brincando com cachorros de estranhos enquanto ele conversava com Cabelo e Nervoso.

— Você e o tio Gabi têm esse cheiro…

— Úrsula, você não pode falar isso, tá certo?

— Não?

— Não pode dedurar os outros…

— Não entendi.

— Esquece, Úrsula, esquece, filha.

— Papai, sua cabeça já melhorou, né? Você já pode conversar agora.

— Sim.

— Você estava conversando com seus amigos.

— Sim.

— A gente pode brincar de coisas, coisas quietinhas?

— Claro, filha.

Passaram a tarde com os brinquedos que Úrsula normalmente queria brincar com ele, mas com os quais ela acabava brincando sozinha, porque o entediavam: quebra-cabeças e jogos de tabuleiro. Ele ficou olhando para ela, pequenina. Parecia tanto com Lúcia. Parecia com ele também, os mesmos olhos. Era ela então a prova? A prova de que um dia ele foi feliz, um dia ele amou e foi amado, a prova de que um dia ele e Lúcia foram um casal. A prova. Uma criança inteligente, dócil, criativa, feliz, aparentemente feliz.

— Ô, filha, desculpa, viu? É só essa dor de cabeça. Você não fez nada errado não.

Úrsula sorriu.

— Amanhã, amanhã nós vamos ver as capivaras e depois…. Depois vamos no Parque Guanabara!

Úrsula sorriu e piscou efusivamente.

— Pode falar agora já, filha!

— Eba! Parque!

Eles montaram todos os quebra-cabeças, jogaram todos os jogos de tabuleiro, jantaram almôndegas com Coca-Cola e foram dormir, com a promessa de amanhã, depois do almoço, ir para a lagoa, para o parque.

No dia seguinte, guiados pela indulgência de Sérgio, passaram a manhã toda tomando café e vendo desenhos. Comeram, os dois, quantidades absurdas de iogurte e bolo, disso achando muita graça.

— Papai, você vai comer mais?

— É o segundo café da manhã!

Depois do almoço — macarrão com mais almôndegas do bar — pegaram o ônibus para a Pampulha. Começaram com o passeio de sempre, caminhando pela orla da lagoa, vendo os bichos e depois continuaram rumo ao parque, onde até então Úrsula tinha ido pouquíssimas vezes. Genuinamente querendo que a filha se divertisse, que se animasse, querendo com isso também ele se divertir, se alegrar, por osmose, garantiu-lhe que poderia brincar em todos os brinquedos que pudesse, ou seja, para os quais tivesse a altura necessária. Úrsula, já dada então a sistematizar sua conduta, sobretudos seus prazeres, quis olhar cada um dos brinquedos, classificando-os em para criancinhas pequenininhas (o que ela não era mais, muito naturalmente); puramente chatos; divertidos, mas proibidos pela altura e divertidos e autorizados. Feita essa classificação, que durou algum tempo e umas duas voltas pela extensão do parque, Úrsula graduou as atrações da menos divertida para a mais divertida, deixando a mais divertida, o tapete mágico, com adornos das Mil e Uma Noites, que balançava vigorosamente de um lado para o outro, por último.

Sérgio estava se sentindo um pouco melhor, toda a eloquência e raciocínio da filha o divertiam imensamente, mas ainda estava tenso. Era gente demais, indo e em todas direções, vindo de todas as direções, falando alto, gritando, comendo, correndo. Temia perder-se de Úrsula, ficava de mãos dadas com as filha, às vezes à pegava no colo, mas ela queria andar solta, ver tudo, correr.

— Quero descer!

Havia todo tipo de gente, famílias com inúmeros membros, incluindo idosos, pequenas famílias nucleares, grupos de crianças sob a supervisão de um só adulto aflito, grupos de adolescentes, adolescentes tão somente, adolescentes góticos, adolescentes punks, adolescentes do hip-hop, casais adolescentes; casais adultos. Tinha alguma coisa de levemente estadunidense naquilo — sobretudo no tiro ao alvo e o brinquedo da marreta — mas de resto era tudo muito natural, familiar e brasileiro. Uma das primeiras coisas que lhe chamou atenção era que vendiam latas de cerveja.

Enquanto esperava com a filha na fila dos brinquedos e observava a filha no trajeto de cada brinquedo, ele ia bebendo. Ia bebendo, olhando para a filha, olhando para o redor. Sua atenção por instantes ia para as crianças nos brinquedos classificados por Úrsula como não divertidos: os patinhos que rodam em volta de um círculo, o trenzinho que faz um percurso que é um pouco mais do que sua própria extensão, o clássico carrossel. Eram crianças pequeninas. Sérgio não sabia dizer, mirando seus olhinhos esbugalhados, seus beicinhos às vezes caídos, se estavam assustadas ou maravilhadas, confusas e irritadas ou imersas numa experiência agradável. Algumas, mais expressivas, soltavam pequenos grunhidos e gritinhos, apontavam para as coisas. Esses estão gostando, pensou. Ele não entendia, deveria ser a cerveja, mas o fato daqueles pequenos seres, tão graciosos, contentaram-se com aquelas diversões tão ingênuas, tão primárias, o enternecia. Ficou pensando nos prazeres perdidos de simplesmente ver as cores, as formas, sentir os movimentos. Pequenos Budas girando; meninas e meninos Jesus contentes, livres da cruz. Ou só bezerrinhos? Criaturinhas bovinas, plácidas, preparando-se, sendo preparadas, para crescer, para engordarem e serem abatidas? Aí, não. Que ruim. Mais uma cerveja, geladinha, para eu ver os Cristinhos, mais uma cerveja, para eu ver os Budinhas girantes.

Findo o trajeto de Úrsula, que contou com pausas para cachorro-quente, algodão-doce, maçãs do amor e um bis do tapete mágico, Sérgio, que até então não tinha ido em nenhum brinquedo, virando velozmente latinhas de cerveja o tempo todo, quis ir num dos tidos por Úrsula como chatos, a roda-gigante. Úrsula, que ficou o tempo todo pedindo ao pai que a acompanhasse, achou bom que no final ele fosse pelo menos em um dos brinquedos com ela. A roda ia subindo e Sérgio ia naturalmente olhando ao redor, aproveitando a vista. No ápice da roda, enquanto estavam ele e a filha observando a lagoa, as árvores e as casas ao redor, o Mineirão e o Mineirinho, a bela e natural transformação das cores do final da tarde, percebeu Úrsula, no canto do olho, a revoada de vários casais de maritacas.

— Olha, olha! Me ajuda, pai! Ajuda!

Ela ia girando o pequeno aro que fazia com que a própria cabine girasse, acompanhando o voo das maritacas. Como carecia de força para girar a cabine na exata velocidade das aves, apelava ao pai, que de pronto a atendeu. Ficaram os dois assim, morrendo de rir, dois puxando o aro para lá e para cá, acompanhando o voo dos pássaros. Sérgio olhava para aquela a cena, para o verde, para o céu, o amarelo, o laranja, para aquele rosa misterioso, aquele azul gris, abobado. Úrsula dava gargalhadas explosivas, seus olhinhos dardejavam em perseguição às maritacas. Olhou para filha, para as maritacas no céu, e queria acreditar, acreditar em Deus, acreditar em qualquer coisa, qualquer entidade à qual pudesse pedir, que ele queria pedir, que ele queria que a vida fosse só aquilo, sempre aquilo, só aquilo. Mas depois de algumas voltas já estava bem mais escuro, os amarelos e os laranjas já estava esmaecendo, as maritacas mais quietas, Úrsula já sem fôlego. No final do passeio a roda já tinha retornado à sua total normalidade. Tinha sido um momento. Muito especial e muito rápido. Dele e de Úrsula, a filha dele. A prova.

Mais tarde, Lúcia veio buscar Úrsula, porque simplesmente não era garantido que ela chegaria pontualmente na escola caso isso dependesse de Sérgio. Lúcia ligou quando já estava estacionada porta, e não saiu do carro. Normalmente Sérgio abriria a porta e simplesmente observaria Úrsula entrando no carro. A comunicação com Lúcia seria um aceno de oi, talvez um oi, um aceno de tchau, talvez um tchau. Dessa vez, porém, ele se aproximou do carro, colocando a mão em cima do teto e quase enfiando sua cabeça dentro da janela para falar com Lúcia.

— Oi.

— Boa noite, Sérgio — ela disse em seu usual tom formal.

Ele percebeu a beleza natural nela, uma grande mecha de cabelo escuro caindo sobre a face, o cheiro de sabonete, os nós das mãos dela vermelhos, ligeiramente inchados.

— Esse ano tem campeonato?

— Todo ano tem, né?

— É, claro. É… Boa sorte!

Foi se retirando lentamente, sem graça, sem nada da confiança com a qual se aproximara. Ali estava Lúcia, sua um dia querida e amada Lúcia, a mãe de sua filha, a pessoa com a qual ele um dia fora feliz, ou pelo menos se imaginara feliz. Ele ainda guardava alguma admiração por ela, mas ela só revelava ali uma vontade de ser friamente protocolar. Ela parecia uma professora de Educação Física muito rígida. E quando ele tentava de alguma forma se aproximar, o que ele ganhava era um empurrão para trás na forma de um silêncio, de um meneio lacônico ou uma resposta muito objetiva e muito desinteressada. E se ele via alguma coisa de doce, alguma coisa de macio, era só um brilho no olho dela, um brilhinho que piscava para ele e dizia:

— Na moral, Sérgio, depois da avalanche de merda que você conjurou, que tal só ser minimamente articulado e decente e fazer esses momentos funcionarem, para nós não termos que ficar mexendo com advogado e juiz? Essas coisas que pessoas adultas e sãs supostamente conseguiriam resolver sozinhas? E é isso, a nossa interação vai ser essa, o que eu espero de você, o que eu estou encarecidamente pedindo de você é isso, nada além disso. Nada menos, nem um pouquinho menos e nada mais, Sérgio, nenhum um pouquinho mais.

E ele sentia que não havia nenhuma entrada, nenhuma pega, nenhum ângulo. Era como tentar beliscar azulejo. Para que insistir? A pior coisa seria insistir. Retirar-se. É isso.

Fechou a porta da rua lentamente, como se fosse uma peça, como se fosse um fantasma saindo de cena. Foi se sentar na escadinha então, com todas as luzes apagadas, ficou ali bebendo o final de uma garrafa de vodka que tinha no congelador, enxugando devagarzinho, com o rádio tocando bem baixinho, com coração apertado, pensando nas criancinhas, nos anjinhos inocentes, da ignorância celeste deles, pedindo a eles que a vida fosse só um gif, uma animação curtinha repetindo em sequência, só ele e Úrsula contra o crepúsculo, girando a cabine da roda-gigante, perseguindo o voo dos casais de maritacas. Ele apagou ali mesmo, acordando horas depois, por conta do frio, ainda pensando nisso. Nesse momento fugaz.

27.

Gláucio estava acostumado a olhar para si mesmo e perdoar aquilo que outros acusariam de torpeza, mas se passar por morador de rua, arremedando as vestes e modos dessa gente sofrida, de início, foi algo que lhe fez se sentir culpado, ou, pelo menos, ligeiramente envergonhado. Mas só de início, já que sua necessidade de manipular as pessoas era maior, sempre maior, do que qualquer entrave moral. Depois de desenvolvido a persona e o modus operandi, passou a ser apenas mais um expediente. Apresentava-se como um sujeito manco e corcunda, a grunhir desarticuladamente, que revirava o lixo alheio com celeridade, em busca quase que só de papeis, e seguia adiante. Assumia o disfarce sobretudo nas segundas-feiras, ao cair da noite, quando colocavam quantidades maiores de lixo na rua, todo o lixo do final de semana. Antes do caminhão da coleta passar, misturava-se aos famélicos que peregrinavam pelos bairros de lixeira em lixeira. Apenas essas figuras desesperadas às vezes duvidavam de sua farsa, a avassaladora maioria das pessoas vira os olhos quando vê um sujeito rasgando um saco plástico sob o qual vermezinhos se contorcem. Certa vez, uma catadora de recicláveis, que esperava aquela figura altíssima ir embora para conferir a lixeira, achou estranho ele ignorar dezenas de latinhas e vários pedaços de papelão. Doutra oportunidade, um jovem se encantou com o fato daquele revirador esquálido ignorar por completo uma pizza pela metade, ainda na caixa de papelão utilizada para a entrega domiciliar. Gláucio batia o olho no conteúdo dos sacos, formulando em sua cabeça um padrão de comportamento a partir do que via, e levava consigo tudo o que era papel. Foi assim que ele obteve as cartas que Sérgio escreveu para Lúcia e nunca enviou.