16.

Sérgio conseguiu aparecer no segundo dia de trabalho, ainda que em péssimo estado: virado, sem banho, com uma barba de cinco dias por fazer, o cabelo bagunçado e engordurado, os olhos quase fechando, por entre as frestas duas brasas.

Antes da aula começar, no banheirinho agressivamente branco e iluminado da sala dos professores, lavou, esfregou e estapeou a cara várias vezes:

— Tranquilo. Eu só tenho de entra na sala e conversar em inglês com esses pré-adolescentes. Eu consigo fazer isso. Nada na minha atual condição me impede de fazer isso. Se eu estivesse prestes a morrer eu conseguiria falar inglês. No inferno eu conseguiria falar inglês. Essa maldita dessa língua estrangeira é minha única perícia nessa vida. Vai rolar, vai rolar.

Vai rolar. Ia rolando, enquanto ele caminhava para a a sala de aula 1. Mas a coisa ficou por demais dramática na cabeça de Sérgio, e o vai rolar, pressionado, comprimido, teve sua estrutura alterada, transformando-se logo em tem de rolar. E aí veio o medo. Assim que viu a turma, uma turma muito pequena — três meninas, dois meninos — , começou a pensar:

— Ô, lá em casa. Nossa, quão distante parece lá em casa, como eu preciso desesperadamente estar em casa, como parece que vão se passar eras geológicas até eu chegar em casa. Não consigo imaginar o final desse dia, esse dia vai ser esticar para sempre, girando em volta de si mesmo, curso e recurso, eterno. O final do dia, uma utopia. Deveria ser um dia normal, mais um dia de rotina, um dia como tantos outros. Mas não. É esse martírio. É é esse suplício. Trabalho. Tripalium. Eu não consigo sequer conceber o fim disso tudo, eu, em casa, tirando os sapatos, sentando na escadinha da entrada. Nunca vai chegar o momento, é distante demais, é impossível. Um dia normal que parece impossível, que é sentido como impossível. O que é isso, é ansiedade? Ansiedade, é só ansiedade? Sinto como se estivesse me arrastando, fazendo uma grande força para me arrastar, mas esse arrastar… O que é? Não é nada. O definidor de mim é isso, essa ansiedade, essa pressão, que não produz nada…

Mas tinha de ir, seguir. Dar a aula. Olhar para eles. Estabelecer contato. Começar. É só começar, Sérgio. Qual seu problema com inícios?

Sérgio começou. Olhou para os alunos.

As três meninas lhe passaram certa tranquilidade. Estavam todas como que se já posicionadas para copiar a matéria no quadro. Não estavam ali para perder tempo. Perfeito. Os dois meninos, porém, sequer lhe cumprimentaram quando entrou em sala e estavam por demais interessados em literalmente trocar figurinhas, figurinhas do Campeonato Brasileiro, matéria arcana para Sérgio.

Seu bom dia foi estranho, um grunhido. A repetição, com um sorriso forçado, fez com que todos gargalhassem. Olha, pensou, Sérgio, eles acharam que foi piada, que eu sou capaz desse tipo de artifício, que eu sou um tipo engraçado. Uma pessoa… Carismática? Com algum carisma? Então tá. Vamos ser o professor engraçado.

— Aposto que as férias de vocês foram absurdamente desinteressantes. Assim, pelo menos para mim, eu tenho certeza de que acharei os relatos de suas férias absurdamente, desprezivelmente desinteressantes — disse Sérgio em um inglês londrino afetadamente articulado, imitando um locutor da BBC, imitando o Stephen Fry.

Carinhas sorridentes. O sarcasmo, senhoras e senhores. Sérgio começou a se sentir bem então. Vai rolar, está rolando, vejam só.

— Porém, apesar desse meu profundo desinteresse pelas atividades das senhoras e dos senhores nesse plano material, eu lhes peço que, no lugar de um breve relato de como foram as suas férias, meus queridos alunos, acreditando piamente no poder da imaginação de vocês, façam aí um relato de como seriam as suas férias ideais…

Mas enquanto Beatriz, a primeira aluna ia falando de praias, luaus, saraus, caminhadas e cachoeiras, os dois meninos — Lucas e Breno — começaram uma calorosa disputa a respeito do valor de troca da figurinha do Neymar, o que fez com que Sérgio perdesse totalmente a compostura e proferisse estrondorosamente um imprompério, atirando nervosamente, num gesto atávico, um pedaço de giz à cabeça de Lucas:

— Oh, for fuck’s sake!

Lucas que, em desafio a Sérgio, pôs se a gargalhar de forma estridente, como fosse tudo uma brincadeira, parte de uma brincadeira. Sérgio movimentou-se desengonçadamente, todo travado, tenso, falou umas besteiras a respeito de hierarquia, o saber e os mais velhos, e, depois de uma crise de soluços, desabou-se a chorar sobre sua senhoril mesa de professor. A velha mesa de madeira maciça de seu pai, que ele colocara na sala de aula 1, sua preferida, a mais iluminada, a mais arejada, perto do canteirinho das hortênsias.

Lucas estava agora muito assustado. Se Sérgio tivesse subido na mesa e pulado, dando uma voadora em sua cabeça, ele estaria menos assustado. Beatriz começou a gritar então com Lucas, enquanto Luana tentou, de sua cadeira, conversar com Sérgio. Breno, o menino que aleatoriamente foi escolhido para não ganhar um giz na cabeça, levantou e encostou a mão na cabeça do professor, dizendo em português:

— Fêsor?

E então para o Lucas:

— Lucas, seu desgraçado, cê fez o fêsor surtar.

As crianças logo saíram e Sérgio ficou sozinho na sala.

O precoce desbandar de seus alunos fez com que um de seus sócios, um australiano de nome Christopher McKraken, fosse até a ele, encontrando-o ainda em prantos.

— Meu irmão, o que é que você tem?

— Aí, Chris, você quer saber, pega então papel e caneta.

Sérgio combinou com os sócios que ia esticar mais uma semana de férias, mas que logo voltava. Prometeu consultas com psicólogo e psiquiatra, prometeu comer direito e fazer exercícios. Cogitou um passeio pelo campo. Andar pelo mato afora.

Estava ali então no final do dia. Aconteceu. Foi bom, tudo correu bem? Não. Mas ele estava ali. Ia fazer o que então? Passeio pelo campo? Foram então várias horas andando por misteriosos bosques cheios de névoa, seguindo o curso de riachos e rios, errando pelo alto das montanhas: fumando maconha e haxixe, bebendo vodka e gin, Sérgio passou a semana extra de férias jogando Skyrim.

Na sexta, enquanto ele enfrentava um dragão, Lúcia deixou um aviso na já anacrônica secretária eletrônica, aviso que ele escutou mesmo com todos os rugidos da fera reptiliana, o arremedo de canto gregoriano, as trombetas e os pratos:

— Séergio. Lúcia aqui. Aqui, é… Cê tá lembrando que amanhã eu deixo Úrsula aí, né?

Não, ele não estava lembrando.

15.

Durante as férias frustradas, nos poucos momentos em que efetivamente pensou com clareza — porque, afinal, foi uma grande sessão de embotamento, de alheação — , Sérgio cuidou de ruminar alguns velhos lugares comuns de sua combalida vida interior.

Por várias vezes, lembrou-se de seu pai com os óculos na ponta do nariz, desconhecendo sua miséria e aflição, como se não significassem nada. Emoções bobas, desmerecedoras do menor interesse. Sérgio não tinha nada novo, nada diferente, nada capaz de despertar a empatia de seu pai. Ah, criança, venha-me com chistes, blagues, raciocínios furiosos; venha-me com argúcia, com wit! Diante dos reclames de Sérgio, o professor de Literatura Inglesa tratava apenas de dizer, misturando Thomas Wolfe com Eclesiástes (sem dar a fonte):

— As pessoas nascem, sofrem e morrem. Nada de novo sob o sol.

Sérgio sentia que escutá-lo, acolhê-lo era para seu pai um trabalho, um trabalho por demais enfadonho. O Professor, com seus óculos na ponta do nariz, teria de abrir mão da sua leitura — sejam as notícias, crítica literária, filosofia política, ou ficção — para prestar atenção naquela lenga-lenga, aquela cantilena infantil? Que ele não se acha bonito, que ele acha que tem alguma coisa errada com ele, que ele se acha fraco, que ele não tem amigos?

— Isso é falta de couro. Você quer uns tapas?

Sérgio se sentia então como um brinquedo estragado.

— Vá ter com sua mãe. Você acha que tem duas mães, é isso?

Mas a mãe tinha também o trabalho dela, e tinha de cuidar de Adriana, a caçula que nasceu prematura e demandava muito, muito zelo. E então Sérgio tinha vergonha de expor suas dores à ela, diante do irmãzinha, pequenininha, que não pôde ficar muito tempo na barriga da mamãe, e que mesmo assim, vejam só, era tão cheia de vida, tão graciosa. Quão egoísta era ele, quão maldoso era ele, de querer alguma coisa.

— Isso, isso, seja um bom irmão para a Dri, Serginho. Você é um bom menino, Seginho.

E Sérgio voltava para o pai.

— Se as pessoas nascem só para sofrer e morrer, por que você me teve?

— Quem te teve foi sua mãe.

— O senhor deu sua contribuição.

— Atendendo caprichos da sua mãe.

Em uma das paradas pós cerveja e almondegas do Nilvado, Cabelo e Nervoso arranhavam um violão que foi passado para Sérgio, que tocou uma versão simplificada, só três acordes, de Fade into you, da Mazzy Star. Ele achou inicialmente que estava gritando, na praça do Santa Tereza, fade into you, strange you never knew, pensando em Lúcia e no seu casamento arruinado, mas ele clamava era pelo pai. (O leitor que não conhece Mazzy Star e o leitor ufanista, por favor, pensem então num Sérgio outro que tocou, num tom choroso, Pra você gostar de mim).

As pessoas nascem, sofrem e morrem. Que decepção. Não era isso que ele queria. Não era isso que ele vislumbrava quando alegre, não era isso que o fazia se mover, quando se movia. Essa circunspeção, essa seriedade lhe enojava. Queria uma vida interessante, uma vida movimentada. Mas não tinha coragem de tentar, de ousar, de buscar.

Num desses dias, escreveu num pedaço de papel almaço, antes utilizado para preparar os tópicos de uma aula de conversação: Às vezes eu acho que é necessário ter uma vida paralela para dar sentido à vida. Depois, nesse mesmo papel: Ai, ai. Como pode uma vida tão boba, tão simples, tão comezinha, ser tão difícil? Tão arrastada?

Em outros momentos o que lhe vinha à cabeça era um sentimento de tempo, de tempo perdido, como se sua idade estivesse elevada a uma potência absurda e fosse irremediavelmente tarde demais. Tarde demais como num jogo de Tetris malconduzido, cheio de linhas e linhas de peças amontoadas de maneira grosseiramente errada, uma coleção de más decisões, de arroubos, de improvisos, de jeitinhos, de soluções ineficientes, um comportamento errático que foi e vai resultando em uma margem de manobra gradativamente menor, menor, menor. Tarde demais. Energia e tempo demais desperdiçados. Desperdício, desperdício, desperdício. Entropia. Preguiça. Entropia e preguiça. Tarde demais.

Essa sua tristeza, essa sua percepção de estar velho, cansado e gasto (o que era mentira, ele tinha apenas trina e cinco anos), misturava-se com a percepção de que o mundo, ou pelo menos o nosso mundo humano, também já tinha ido longe demais, tudo estragado e sem conserto. E então pensava e sentia que a vida era só isso, essa civilização antes feita com pregos agora feita com plástico, definhando, amarelando, desbotando. Numa tarde lenta, pegou-se instando uma abelha que circulava o bocal de uma garrafa plástica de dois litros de Coca-Cola:

— E esse gostinho na boca, de que chegamos tarde demais, chegamos no final, só para ver tudo ruir? E tudo efetivamente ruindo diante de nós? Isso aí que chamamos de civilização se desfazendo e ninguém dando a mínima…

E aí ele ficava horas pensando nisso, no fim do da civilização, na decadência dos nossos tempos, misturando o derrapar da sua vida com o derrapar do mundo. Microcosmo e macrocosmo.

E como não queria realmente pensar mais em nada disso, como ele não queria enfrentar nenhuma dessas questões, voltava então à masturbação viciada e mecânica, ao álcool, à maconha, à pulverizada Ritalina recreativa e ao MMO.

Mas seu poder crítico nunca podia ser totalmente obnubilado, de tal forma, que um dia, segurando seu pênis murcho, percebeu-se que sua sexualidade já se encontrava completamente deturpada, eis que começava a se masturbar sem nenhum pensamento libidinoso, nenhum tesão, sua ereção nada mais do que um reflexo pavloviano, totalmente dependente da exposição à pornografia, sendo a breve liberação do orgasmo o que ele realmente almejava. Com frequência não sabia o que realmente queria, se era chorar, gozar ou simplesmente levar à mente a um estado de esgotamento, para que fosse silenciada.

14.

Uma semana antes das férias do meio de ano chegarem, Sérgio começou a preparar mentalmente como passaria aquele julho, imaginado-se então uma pessoa marcada pela ação. Daria um bom trato no corredorzinho da entrada da casa, eliminaria todas as ervas daninhas crescendo entre as frestas do cimento e junto das plantas, arrumaria a calha de água arrebentada e mandaria a máquina de lavar para o conserto. Dentro de casa, pensava em pintar todos os cômodos (ah, o prazer pequeno burguês de superfícies brancas, limpas), arrumar os tacos soltos do chão da sala e solucionar a questão da fiação do banheiro. Não é porque é uma casinha pequena, humilde, que ela não merece um cuidado, pensava, é uma casa honesta. E eu também mereço, e aí Sérgio se imaginava alternando seus trabalhos na casa com caminhadas plácidas, alongamentos e os poucos golpes de kung fu que conseguira aprender com Lúcia. Ah, será tão bom, pensava, imaginando-se fazendo graciosos movimentos de mão na pracinha, circundado por seus novos colegas, as pessoas responsáveis e ativas, os aposentados madrugadores.

Mas foi só dispensar a última turma de alunos e ir para casa que aquelas férias começaram a se revelar como algo deveras diferente do desenhado. A rotineira caminhada até sua pequena casa geminada até que deu certo, sem desvios. Sérgio não parou no bar do Nivaldo, não passou no Duarte para pegar uma cinquenteira e nem deu um tapa com os conhecidos já em atividade na praça. Mas, assim que trocou os sapatos pelos chinelos e os jeans pelas bermudas, já ele estava sentado na frente do computador, clicando furiosamente em seus inimigos no World of Warcraft. A sessão acabou só no dia seguinte, depois de vários comprimidos de Ritalina esmagados e cheirados. A aurora, com seus homéricos dedos rosados, encontrou um Sérgio grotescamente encurvado, com a cara enfiada no monitor, mal conseguindo manter os olhos (muito vermelhos) abertos, sofrendo de pequenos espasmos. Foi dormir um pouco depois disso, só porque já não conseguia mais jogar.

Horas mais tarde, quando já era efetivamente de tarde, Sérgio acordou assustado, imaginando-se atrasado para ministrar as aulas do dia. Lembrando-se que estava de férias e do que fizera na noite passada, sentindo uma estranha combinação de alívio e culpa, cuidou de quase rastejar para a cozinha, onde fez café numa velocidade tântrica. Ficou por uns instantes bebericando o seu café e lendo as manchetes nos portais de notícias, sem conseguir absorver nada. Conseguiu evitar a tentação de jogar mais videogame, mas não a de se masturbar. Passou então as próximas duas horas apertando e agitando seu mecanicamente o seu pênis com a mão esquerda, enquanto com a direita ia avançando e trocando os vários vídeos absurdamente irreais cujas imagens pipocariam por sua mente durante sabe se lá até quando. Chegada a noite, Sérgio estava com o estômago vazio, irritado, absurdamente esgotado e abobado, com as roupas sujas, fedendo a suor, urina e esperma. Na necessidade premente de comer alguma coisa e se sentir uma pessoa, ele tomou banho, encontro um par de roupas limpas e seguiu para o bar do Nivaldo, onde foi recebido com a usual boa vontade, que ali o teacher era muito querido. Depois de algumas cervejas e algumas almondegas, decidiu que o melhor a fazer era ir dormir, só dormir, que amanhã lhe seria dado outro dia. A Terra iria muito naturalmente rodar e lhe dar um outro dia. Um dia que ele não estragaria. Um novo sol, como diziam os antigos. Um novo sol que ele saberia aproveitar. Na praça estavam Cabelo e Nervoso, fumando fininhos que ia surgindo em passes de prestidigitação. Nada como um tapa na pantera para ir dormir, avaliou Sérgio, que não se demorou ali, deu duas pegadas e foi. A onda o alcançou já chegando em casa, onde as ervas daninhas, a calha arrebentada, a máquina de lavar estragada, as paredes sujas e marcadas e os tacos soltos formaram um júri que lhe sentenciou como um grande cheirador de Ritalina, punheteiro, maconheiro e, sobretudo, vagabundo. Mas era só deitar, deitar, que a Terra iria girar e produzir um novo dia. Um novo sol. Um novo dia que ele não estragaria. Um novo sol de cuja luz ele saberia ser digno.

Não foi isso que aconteceu, porém. Depois de coisa de meia hora deitado, rodando na cama, Sérgio já estava macerando cápsulas de Ritalina, esperando o WoW carregar.

E assim se passaram cinco dias de Sérgio virado, tomando café da manhã no bar, fazendo um social com os pelotiqueiros na praça e seguindo para um pesado expediente de WoW potenciado por Ritalina pulverizada, seguido de todos os exageros e excentricidades que a pornografia pode oferecer. Eu ainda tenho vinte e cinco dias, Sérgio ia se tranquilizando. Eu estou de férias. Eu preciso descansar. Ele se lembrou do seu antigo chefe na esbórnia, cometendo toda a sorte de indulgências, sujeitando-se a uma gama de riscos, dizendo: eu estou lavando a minha alma. E ele estava então lavando a alma dele.

No sexto dia Cabelo e Nervoso não estavam na praça, Sérgio acabou indo para a casa de Duarte, dizendo para si mesmo no caminho que iria comprar só vinte e cinco gramas, já sabendo que ia pegar uma cinquenteira mesmo. Voltou para a casa com medo de tomar uma batida. No teoricamente inviolável resguardo do domicílio, decidiu fumar mais, o que o levou a querer ver um filme, fumar mais, comer e então dormir. Apagou quando não eram nem duas da madrugada. No sétimo dia estava então Sério de volta à vida diurna.

Acordou de um pesadelo estranho, no qual seu pai morto, acadêmico, especialista em Conrad, zombava dele por sua pretensão de estudar Tolkien a sério, na academia. Sérgio chorou muito e ficou até a hora do almoço na cama, suspirando e fumando um baseado gordo. Pensava em Lúcia, em Úrsula, mas, sobretudo, pensava em seu pai morto. Almoçou um misto quente com suco de laranja na padaria, fez compras para alguns dias no super mercado. Quando chegou em casa logo guardou as compras e, nu, passou o resto do dia arrancado as ervas daninhas do corredorzinho, e, depois, movendo todos os móveis da casa para um cômodo só, em preparação para a vindoura pintura.

Mas nos dias seguintes, embora não tenha se entregue aos vícios, mesmo acordado de dia e dormindo de noite, não teve a necessária disposição, e se resumiu a fumar maconha, comer refeições preparadas no micro-ondas e começar a fazer várias tarefas diferentes, em velocidades absurdamente lentas. De vez em quando, irritava-se e se sentava no chão, encostava-se na parede de uma forma desconfortável, nociva à sua coluna, de fato estranha, e chorava por minutos a fio. Num dia que seguia assim, triste, de lentos trabalhos manuais feitos de forma a mais inapta, quando na missão dos tacos da sala, Sérgio bateu o martelo no seu dedão, o que levou a uma crise de choro, um choro quase infantil. Logo que foi feito um curativo desnecessariamente volumoso, Sérgio já estava no escuro, iluminado apenas pelo monitor, pulverizando Ritalina. As noites de escapismo voltaram.

E assim foi, até Sérgio se pegar na conta dos dias, descobrindo-se com dez. Em dez dias ele poderia muito bem, com determinação e afinco, terminar de fazer o que ele chamava de reforma da casa. Poderia? Poderia. Terminou? Não. As férias acabaram e Sérgio faltou ao primeiro dia de trabalho. Avisou seus sócios — que passaram a manhã inteira ligando para ele — só depois do meio-dia, mentindo, dizendo que estava passando mal, que achava que era infecção alimentar. Só faltou um atestado médico falso comprado na Praça Sete para a desculpa ficar mais atrapalhada.

13.

Quem veio buscar Pereira para levá-lo de encontro à Mestra foi Vitório Nicolau. Ansioso, o jornalista aguardava o homem logo fora do lugar designado como seu dormitório. Ao ver a silhueta, alta, com ombros acentuados e bem espaçados, Pereira imaginou um moço, ideia que se desfez quando ele foi se aproximando, revelando seu cabelo escorrido – um pouco loiro, quase todo grisalho – penteado para trás, o rosto enrugado, vermelho de queimado de sol e suas cansadas íris azuis envoltas por escleras cheias de veiazinhas avermelhadas. Assim, de perto, aparentava uns sessenta anos, mas sessenta anos de muita saúde, que seu porte era realmente atlético, trabalhado. Trajava um macacão muito semelhante ao de piloto de Fórmula Um, todo púrpura, adornado de cima a baixo com símbolos sagrados de várias tradições bordados em fio dourado, fazendo as vezes dos logotipos dos patrocinadores. Ostentava assim diferentes cruzes, o Qui Rô, o Om, o Nó Eterno, o Crescente com a Estrela, a Estrela de David, o Ying Yang, a Ankh, o Djed e uma variedade de suásticas. Além de todos esses sinais, trazia ainda no peito uma medalha, também dourada, de Joana D’Arc. Na cintura, em um coldre, Vitório Nicolau – a quem Pereira apelidara automaticamente de Piloto – trazia um 38 de cabo de madrepérola

Assim que chegou próximo de Pereira, Piloto o repreendeu por estar sem seu barrete preto, dizendo que alguém do grau do jornalista – a bem da verdade, um mero visitante — não poderia de forma alguma encontrar a Mestra com a cabeça descoberta. Logo seguiram, Piloto caminhando à frente até mais uma das várias construções de formando arredondando. Após descer alguns níveis em um pequeno elevador cilíndrico, guiou Pereira por uma galeria de túneis até a um segundo elevador. Durante esse trajeto subterrâneo Pereira ia sentindo um forte cheiro de pó de cimento e mofo, espirrando algumas vezes.

O segundo elevador parou após um ressoar pneumático, as portas se abriram com um estrídulo e um descerrar dramático, progressivamente mais lento. Pereira se deparou com um longo caminho reto que cortava dezenas de estantes de livros cuja disposição formava vários círculos concêntricos. No fim do caminho, no centro dessa biblioteca, havia um jardim iluminado por uma claraboia. Atrás, à sua esquerda e à sua direita, ladeando o elevador, Pereira pôde ver pequenas janelas ovaladas, que davam vista para toda a parte inferior do complexo. Estava agora no domo, percebeu, no último andar do domo. A medida que passava pelas estantes lentamente, pressionado pelo Piloto, que ia o cutucando nas costas, Pereira via, em nichos colocados entre os livros, pequenos bustos de figuras históricas, a sua maioria filósofos e pensadores. Os bustos tinham uma pequena legenda identificando o representado. Aproximando-se do jardim, Pereira pode ver a suposta face e ler sob o busto o nome de Zoroastro, Pitágoras, Platão, Plotino, Iâmblico, Zósimo de Panópolis, Maria a Profeta e Paracelso, dentre outros.

Chegando ao jardim, aleias de arbustos de verbena, alecrim, alfazema, basílico e sálvia levavam a diferentes espaços dentro do ambiente, onde cresciam diversas outras plantas, dentre as quais Pereira pode ver lírios, uma figueira, oliveiras e sarças. Um elaborado sistema de iluminação, irrigação e pequenas estufas climatizadas estava ali estruturado, de forma que cada planta tinha suas necessidades particulares atendida. Piloto o conduziu para um desses espaços, onde, sentada numa imensa e incrivelmente elaborada cadeira de vime, tendo espadas-de-são-jorge, pés de comigo-ninguém-pode e uma grande e florada trombeta como fundo, estava ninguém menos do que a própria Mestra Intreza. Ela tinha diante de si um pequeno cavalete, onde pintava um arranjo de plantas em aquarela. Concomitante com a entrada de Piloto e Pereira, três sujeitos de vermelho entraram no jardim e, com muita velocidade e silêncio, recolheram todos os materiais de pintura da Mestra, que se disse alguma coisa a eles, Pereira não pôde ouvir. Ela continuou sentada, com a postura perfeitamente alinhada. Trajava um imponente vestido de seda verde, com detalhes em ouropel azul, decorado com iridescentes asas de besouro. Seu cabelo, ou era uma peruca?, estava penteado em duas tranças que lhe desciam pelo torso, envoltas em fitas douradas cheias de filigranas vermelhos. Ela sorriu placidamente O que fazer?, como me portar?, eu me ajoelho?, Pereira inquieto, olhou para o lado, vendo Piloto fazer uma sutil mesura. Outro devoto chegou, também de vermelho, revelando sua presença quase que no último momento, com um banquinho para Pereira. Piloto lhe deu um leve empurrão debaixo das escápulas, fazendo-o avançar dois paços desajeitados, anunciando-lhe secamente:

– Minha senhora, o jornalista.

Diante de Mestra Intreza, que para ele era Cármen, Cármen Valente band leader da banda Olho Pineal, Pereira sentiu-se ao mesmo tempo bambo e agitado. Havia nele uma ansiedade imensa de falar, falar com ela, ser escutado por ela, perguntar e escutá-la também, obter dela todos os necessários pedaços que completariam a história que ele ia rascunhando. Queria imensamente agradar, ser simpático, ser receptivo, compreensível, ele queria muito, desesperadamente que Cármen, Cármen, a artista, não essa madame mística, se apresentasse e se abrisse diante dele. As coisas foram um tanto diferentes.

– Então você é o Daniel Pereira, da revista Palco? O jornalista que veio fazer um perfil da nossa Associação Transcendental Amalantrah? – ela disse de forma exageradamente alta e articulada, quase teatral – Seja pois bem-vindo, sou Intreza, lidero os trabalhos aqui. Entendo que você já pôde conhecer nossas instalações e deu início ao curso de introdução ao Tarot. Perfeito. Será que você já começou a entender o que estamos fazendo aqui?

– Não sei dizer… – disse Pereira sorrindo, depois de encher os pulmões – Mas lhe dou certeza que passei a entender melhor uma canção, uma favorita minha, com o nome até então estranho de o Do Tolo ao Pelotiqueiro. Que eu sei que a senhora conhece, de um grupo de rock de São Paulo, chamado Olho Pineal.

E então a face de Intreza se contorceu em uma careta de vergonha e nojo que causou verdadeiro terror em Pereira:

– Eu não acredito, eu absolutamente não acredito… Que você esteja aqui, gastando seu tempo, o tempo de seus superiores, o meu tempo e o tempo de todos aqui envolvidos para falar dessas besteiras.

12.

De volta ao carrinho de golf, rumo ao centro do complexo, sentado no banco de trás, Pereira observava atentamente as construções da vila, todas com algo de arredondado em seu desenho, a maior parte com paredes curvas formando um cilindro, o teto em formato de abóboda; algumas poucas mais ousadas: esféricas, elipsoides, ogivais. Construções de concreto armado, mas com muito metal, muito vidro, em ótimo estado de conservação. Muito bem cuidados estavam também os pequenos jardins contíguos a essas estruturas, só alguns tendo algumas plantas secas.

O moço ia reparando também nas pessoas que apareciam nas janelas circulares daquelas curiosas moradias e andavam calmamente pelos muitos caminhos que ligavam as edificações, quase todas com as vestes vermelhas da casta dita dos filósofos (ainda que, em muitos casos, as regras de vestimenta não fossem observadas completamente, alguns apresentando o modelo padrão com pequenas personalizações: uns sem mangas, outros com calças boca de sino, uma moça de barriga de fora, um sujeito com um boné, uma senhora com chapéu de vaqueiro).

Pessoas que pareciam, pelas expressões de calma e branda alegria, estar próximas da beatitude. Assim que viam Aeris, o Sr. Hildebrando e Pereira passando no carrinho, cumprimentavam-nos, uns com breves acenos, outros levando as mãos juntas a frente do corpo e se inclinando em reverência.

Ainda desgostoso com a experiência no tanque de flutuação, Pereira contemplou o cenário com distanciamento.

Aeris seguia à frente, na condução, com o Sr. Hildebrando ao seu lado. Ele narrava, com imensa felicidade, sua experiência ocorrida instantes atrás, no tanque, deixando Aeris quase que igualmente contente. Tomado pela emoção, Hildebrando falava alto:

— Virgem Maria!, minha filha, minha filha, o quê que foi isso?, que coisa mais maravilhooosaaa, ai, ai… Eu vou é voltar muito nesse tanque, muito. Ó, perdão, menina, perdão pela minha birra lá, antes. Ai, se eu soubesse, já ia correndo, correeendo para dentro daquela salmoura. Ai, ai, só o flutuar, o flutuaaaar, é como estar voando, pairando, ai, eu um dentinho de leão, pairando… Depois de uns instantes, ai, que, deleite, todas as minhas dores, as dores nas minhas articulações — esfregando as mãos, esfregando os pulsos — as dores sumiiiram, sumiiiram, minha filha… Mas, isso não foi o mais, ahn… Eeesssplêndido dessa, ahn, dessa vivência… Depois d’um tempo fiquei imaginando, imaginando e vendo ao mesmo tempo, assim, na minha frente, uma bolha prateada, que eu sabia que era, vejam só, o meu próprio in-te-lec-to, o meu próprio intelecto na forma dessa bolha, prateada, errando pelo espaço sideraaal, em busca, em busca de…

— Da sua amiga — disse enfaticamente Aeris, fazendo com que o Sr. Hildebrando assentisse, cerrando os olhos com imensa cerimonia. A jovem mulher aproveitou para revelar um pouco mais acerca do uso dos tanques na Associação:

— Bem, sua experiência foi extremamente positiva então. Eu acho, inclusive, que deveríamos conversar com os superiores nesse caso, porque me parece que o senhor é um sério candidato a um experimento de Ganzfeld.

— Experimento de Gan-?

Ganzfeld. Não é exatamente um experimento, mas uma bateria de testes feitas com a pessoa no tanque de flutuação. Avaliam a capacidade de manifestar percepções extrassensoriais e… Outras capacidades questionadas pelos de mente limitada.

—Interessantíssiiimo…

Pereira assobiou baixinho o tema de abertura do desenho animado dos X-Men da década de 1990. Aeris, de mesma idade e de quase mesmas referências, reconheceu a vinheta, mas relevou a provocação. Sem se virar para trás nem um pouco, focada na via, questionou o jornalista:

— E você, Daniel? Como foi a sua experiência com o tanque de flutuação?

Um calor surgiu do início da coluna de Pereira, abraçando seu abdômen e subindo rapidamente por suas costas. Seria medo? Não, não, pode. Medo. Passando a mão sobre o bigode, tentando parecer despreocupado (para alguém que sequer o tinha dentro de seu campo de visão?, para si mesmo?), Pereira respondeu a pergunta depois de instantes de inegável desconforto:

— Bem. Nada. Eu não vi, não ouvi nada. Só o escuro mesmo. E o silêncio. Nada.

— Mas… Foi bom?

Pensando na face gigante de Cármen pairando sobre as águas, mirando-lhe os olhos, o calor ainda expandindo em ondas a partir da sua lombar, quase gaguejando:

— Ihn… Indiferente o que não poderia ser mais diferente.

A visão que tivera no tanque fora vivíssima e lhe perturbara. Sentiu como se sua mente fosse translúcida. Como se tivesse sido despido de todos os seus segredos. Como se não estivesse realmente sozinho no tanque, como se estivesse ali uma presença elusiva e sombria que lhe prescrutava os pensamentos.

Essa percepção, de todo má, veio-lhe acompanhada de um mal-estar físico. O que foi isso? O que podia ser? Pereira pensava então no poder da sugestão e se perguntava como realmente funciona o tanque de flutuação, irritando-lhe a incapacidade de pesquisar a respeito do tema na internet imediatamente. Irritava-lhe ainda a impossibilidade de fumar e o roncar de seu estômago.

Passadas mais algumas construções retrofuturísticas, chegaram à praça que ficava no centro da vila, no meio da qual havia uma enorme estrutura: um domo geodésico cujas hastes de metal envergavam grandes triângulos de lona verde. Sob essa sofisticada tenda murmuravam pequenas fontes, distribuídas entre diversas mesas e pequenos quiosques.

Depois de estacionar o carrinho em uma pequena vaga próxima à praça, Aeris apontou para o quiosque onde Pereira e Hildebrando deveriam seguir par receber suas refeições. Em seguida, ajudou-os a encontrar em seus mapas-cronogramas os alojamentos para os quais deveriam ir antes de suas atividades agendadas, cujos locais designados ela também os ajudou a encontrar em seus folhetos, além de orientá-los a partir de pontos de referência visíveis ali.

Prometendo vê-los de novo em breve, foi embora em ligeiras passadas atléticas, quase que deslizando sobre o chão.

Pereira soltou então um muito tímido e questionável Obrigado, foi um prazer e seguiu sem demora até o quiosque onde lhe serviriam a prometida refeição, sem esperar pelo Sr. Hildebrando, que veio atrás lentamente, parando aqui e ali para admirar o domo geodésico e os jardins.

No quiosque, após consultar o nome de Pereira em um terminal caquético, o homem de roupas rubras encarregado daquela função um senhor grisalho com ares de professor de Matemática lacônico desapareceu atrás de uma porta vai e vem, voltando em seguida com uma bandeja com duas tigelas e um copo. Em uma tigela havia arroz integral, sem sal, coberto por poucos pedaços de cebolinha. Na outra vasilha havia vagem cozida e três pequenos pedaços de tofu salpicados com cúrcuma. No copo, Pereira descobriu com uma bebericada, havia um suco de limão muito ralo, sem açúcar.

Esgueirando-se de forma a evitar ser visto pelo Sr. Hildebrando, o moço procurou por uma mesa vazia onde pudesse sentar e comer sozinho. Não foi difícil: a praça era enorme e poucos almoçavam àquela hora. Pereira misturou a vagem e o tofu com o arroz e rapidamente mecanicamente processou tudo entre goladas do suco. Ao fim, olhou com desânimo para as tigelas e o copo vazios sobre a bandeja. Ainda evitando o Sr. Hildebrando, que havia sentando junto de pessoas vestidas de negro (pai, mãe e filho adolescente, aparentemente), Pereira seguiu rumo ao alojamento observando os triângulos desenhados no chão pela luz que passava pelas frestas da estrutura geodésica.

Disneylândia de maluco… disse baixinho ao sair da praça. Minutos depois entrava em uma das casas arredondadas, recebido por um sujeito magricela de vestes amarelas com um sorriso fixo no rosto.

Pereira tinha uma hora até o início do curso de tarô. Pensou em dormir, mas logo lhe veio o receio de ter em sonhos outra visão como a da câmara. Deitou-se de bruços na cama de colchão duríssimo do pequeno quarto e se pôs a registrar as impressões dos momentos que acabara de viver desde que passara pelos portões da Associação Transcendental Amalantrah. Ia preenchendo seu caderninho com um rabisco furioso, impulsivo, quase como em um exercício de escrita automática. Quando se atentou para o horário, buscando pelo relógio de parede, já estava atrasado. Despediu-se às pressas do moço de amarelo e seguiu para a Introdução ao Tarot, o Grimoire Sagrado dos Antigos Egípcios.

Chegando ao local designado para o curso, Pereira teve imediatamente certeza da importância do tarô para a Associação: a ampla sala circular na qual fora recebido era totalmente dedicada ao estudo e uso de tais cartas: no lugar de paredes, vitrais de cores vibrantes (muito vermelho, amarelo e azul) com as vinte e duas figuras dos arcanos maiores. Em sentido horário, as imagens começavam no Tolo (ou O Louco, como traduzem alguns) colocado logo atrás do púlpito do ministrante do curso e, seguindo dando a volta por todo o recinto, terminavam no Mundo, ficava logo à esquerda do Tolo.

Mais impressionante do que a sala e seus vitrais era o professor. Da mesma forma que Aeris (e Incigaz e Zandroso), ele havia chegado a um nível dentro da hierarquia da Associação que o colocava um grau acima dos filósofos, ostentando assim vestes particulares, que revelariam sua verdadeira persona, descoberta ao fim de um longo processo espiritual. O homem, alto e magro, usava um relativamente discreto terno de linho (creme), sandálias de franciscano e um colar de contas vermelhas. Dentro do contexto, nada chamativo. Chamativa, porém, era a cor de sua cútis: um azul-claro totalmente atípico, nunca antes visto por aqueles que agora figuravam ali como seus alunos. Tal condição, a argiria, causada pela intoxicação por sais de prata, fora causada nesse caso específico por um experimento fracassado de medicina alternativa conduzido pelo próprio homem, que atendia ali pela alcunha de Felizberto Luzbel.

Da cor do céu matutino, como um deus Hindu, de longo cabelo e barbas brancas, o homem rapidamente cumprimentou os seus aprendizes com rápidas reverências e se pôs, sem demora, a iniciar os trabalhos, uma mão no microfone, outra jogando displicentemente o fio do microfone de um lado para o outro.

— Conhecimento, como bem sabemos, é poder. O poder pode estar nas mãos de qualquer um? Não, por óbvio. Não, em absoluto. O poder deve ser concedido somente aos sábios. Aos sábios. Como transmitir então o conhecimento sem disseminá-lo entre aqueles que dele fariam mal uso. Como? Como esconder e transmitir o conhecimento, ao mesmo tempo? Como? A melhor maneira de esconder algo, meus caros, é deixá-lo a vista de todos.

Luzbel possuía uma dicção perfeita e um sotaque estrangeiro indecifrável. Falava lentamente, com uma voz rouca, roçando o amplo bigode no microfone. Ia buscando os olhos dos alunos, que o observavam avidamente. Pereira inclusive, que profissionalmente tomava notas.

— Imaginem então o mais importante livro já escrito.

Tirou o microfone do púlpito e começou a andar de um lado para o outro do palco, muito levemente, as roupas claras servindo como tela para as formas e cores dos vitrais, fazendo dele quase um caleidoscópio humano.

— O mais poderoso livro já escrito. Uma obra do divino Djehuti, mais conhecido entre os leigos por seu nome grego, Thoth; que eles, os gregos interpretaram como sendo o próprio Hermes deles. O mais importante livro já escrito. Obra de quem? Do agente alienígena da grande revolução cognitiva. Revolução que marcou a humanidade e sua lida com a realidade para sempre. Imaginem esse livro. O poder desse livro. O livro da linguagem, da linguagem do mundo, a linguagem na qual a própria realidade está escrita.

Luzbel arrumou seus óculos dourados, que haviam escorregado para a ponta do seu nariz, e ficou olhando para os presentes com um caricato ar de admiração, tentando evocar jocosamente um senso do épico, do fantástico, como alguém que conta um conto de fadas para crianças. Pereira olhou rapidamente ao seu redor, o mais discreto que pode, com o intuito de ter uma noção de como Luzbel estava sendo recebido. Esperava por, pelo menos, um sorriso irônico, cético, dentre os presentes. Mas não. Os que não estavam imersos, entregues à Luzbel, pareciam, no mínimo, genuinamente entretidos.

A exposição seguiu:

— Um livro escrito em uma língua para sempre sagrada e secreta, traduzido, depois do dilúvio, para hieroglifos pelo segundo Hermes, o mestre Hermes Trimegisto, e então devidamente editado por Agatodemo, para o uso dos mais altos sacerdotes do Egito Antigo. Esse livro. Como os sábios fizeram com que ele atravessasse os séculos e chegasse até nós? Ora, foi escondido, transformado em um brinquedo, em um jogo, em meras cartas. Nós vamos aprender nesse curso como ler esse livro, como usar esses sinais, sinais de como as coisas foram, como as coisas são e de como elas poooooodem vir a ser… Vamos aprender a usar isso ao nosso favor, para o nosso bem… Consequentemente, para o bem de toda a humanidade… Quem aqui já estudou o Tarot antes? Já buscou entender melhor essa antiquíssima forma de lidar com a realidade? É… Levantem a mão…

Luzbel ficou de mão levantada olhando para seus alunos, todos de mão também erguida, com a exceção de Pereira que, de ombros curvados, voltou a olhar a seu redor muito vagarosamente. Pereira pensou consigo mesmo se ainda era tempo de também erguer a mão e ir com os outros, mas Luzbel o interpelou antes que pudesse concluir:

— Ah, então esse exercício inicial vai ser um tanto mais difícil para vocês aproximando-se então de Pereira, pousando levemente a mão em seu braço Já você vai ter mais facilidade, querido… Nunca estudou a fundo o Tarot?

— Não… Não, senhor.

— Tem um conhecimento superficial?

— Ahn, sinceramente? Não, senhor.

— Sabe o significado dos Arcanos Maiores?

— Não, não senhor…

Luzbel, então voltado para Pereira, girou-se nos calcanhares abrindo e erguendo os braços:

— Olhem só, minha gente, que coisa linda. Vocês não sentem uma pontada de inveja? Hein? Lembrem-se de quando tiveram seu primeiro contato com esse sagrado livro mágico! O impacto que foi! Não foi? Esse jovem aqui, esse nosso colega, nosso amigo, nosso amiguinho aqui está prestes a sentir esse impacto! Ah, minha gente, digam para ele, vai ser arrebatador, não vai? Vai ser incrível.

Os demais riram um pouco, acenaram com a cabeça, fizeram que sim erguendo alegremente as sobrancelhas, mas nada disseram.

— É realmente um privilégio. Todos nós estamos lembrando aqui de como chegamos ao Tarot e como eles nos impactou. A sua vez chegou! Há! Você consegue escutar, consegue? Pã, pã, pã! Pã, pã, pã! É o destino batendo na sua porta!

Pereira, em nenhum grau empolgado com a coisa toda, abriu um sorriso falso, por empatia, por não querer desagradar o velhinho azul, que seguiu conduzindo sua aula:

— Vocês vão fingir que… Vão fingir e o amigo aqui… Qual é o nome? Daniel. O Daniel não precisa fingir…Vão fingir que não conhecem os significados das cartas e vão se ater aos desenhos, a partir da imagem, a partir do desenho, vão fazer uma interpretação da carta. O que essa carta quer falar comigo? O que eu sinto ao ver essa carta? Esse rosto, que expressão é essa nesse rosto? Eu gosto, não gosto? E os detalhes. Só o desenho gente, esquece livro, esquece estudo, esquece… Você não, Daniel, para você é mais fácil, você vê, você só vê. Veja. Ó.

Luzbel abriu o tampo da mesa diante da cadeira onde estava sentado Pereira revelando uma pasta, azul-claro, de um material emborrachado, na qual se lia A.T.A.:

— Ora, ora, vejam só. Todos vocês têm isso aqui, ó, isso, isso, vamos pegando o material, aqui, ó… Dentro da pasta… Um bloco de notas, canetas, e aqui, todas as cartas do Tarô de Marselha. Isso, e agora, pequemos, só os arcanos, maiores, vamos lá, comigo, como o nosso amigo Daniel aqui, separar, vamos lá, o Louco, o Mágico, a Papisa, a Imperatriz, o Imperador, o Papa, os Namorados, a Carruagem, a Justiça, o Eremita, a Roda da Fortuna, a Força, o Enforcado, a Morte, a Temperança, o Diabo a Torre, a Estrela, a Lua, o Sol, o Julgamento, o Mundo.

As peludas e azuladas mãos de Luzbel espalharam as cartas na mesa de Pereira, que as foi recebendo com atenção.

— Você vai, meu querido — disse o velho — só olhar cada uma das cartas e escrever a primeira coisa que lhe vier à cabeça. Algo bem espontâneo. Não elabore.

Pereira então, focando, nas cartas, nos desenhos, nas formas e nas cores, relaxou. As figuras – com toda sua síntese arquetípica, sua canônica carga cognitiva, sua mímese dum microcosmo físico e metafísico medievo – pareciam-lhe como os deuses de um panteão fantástico, os signos de um horóscopo exótico, as peças de um jogo de tabuleiro esquecido, os possíveis personagens de um excêntrico videogame de luta, as opções de classe de um RPG obscuro. Observá-las e entregar-se à livre associação foi acolhedor. A imersão se completava graças os fachos de vindo dos vitrais, ao vermelho vivo das cortinas e carpete e ao amarelo dourado da madeira usada na construção do pavilhão.

O resultado do exercício de livre associação foi o seguinte:

(0) Quem não tem cão caça com gato.

(I) A folhinha debaixo das pernas do Mágico: uma vagina.

(II) A Sacerdotisa tem um ovo, a Imperatriz uma águia.

(III) Vide II

(IV) O Imperador governa a partir de um trono quebrado, no qual não consegue sentar direito.

(V) O Papa, fashion feito o Michael Jackson, usa luva em uma só mão.

(VI) Os Amantes são duas vezes perturbados: pelo cupido, símbolo da paixão irracional; e pela coroa, símbolo da sociedade careta e opressora.

(VII) A Carruagem não sai do lugar: o fundo arrasta no chão, cada cavalo puxa para um lado.

(VIII) Felizmente, dessa vez a Justiça não está vendada.

(IX) Gandalf com lampião.

(X) A Fortuna é governada por um macaco de capa.

(XI) A Força é uma veterinária.

(XII) Passarinho que passeia com morcego acorda de cabeça para baixo.

(XIII) Compostagem de cadáver

(XIV) Água no chopp

(XV) O Diabo é uma dominatrix de cinturoca

(XVI) Para raio.

(XVII) A Estrela entra para o AAA.

(XVIII) Tenha consideração pela lagosta.

(XIX) Use filtro solar.

(XX) O Julgamento vem de um hooligan de vuvuzela.

(XXI) O Mundo é uma Miss Universo voadora cercada pelos quatro evangelistas.

Luzbel, ao receber a anotações de Pereira se surpreendeu com a descoberta da androginia do Mágico pelo neófito e o saudou efusivamente, acusando-o de ser uma grande promessa do ocultismo. Assim, aliviado como de um aluno que sai da sala de avaliação tranquilo com seu desempenho e feliz como quem acabou de ganhar uma partida de WAR contra os primos, Pereira deixou a sala do tarô.

11.

Ainda na dita Câmera de Descompressão, adentrando um pequeno cômodo, com o teto e todas as paredes pintadas de preto, iluminado apenas por pequenas lâmpadas púrpuras colocadas à altura dos rodapés, com um enorme alçapão no centro, Pereira não pôde deixar de se lembrar dos inferninhos que frequentava, dos quais voltava com a roupa toda fedendo a cigarro, depois de ter pago um valor absurdo para conseguir ficar bêbado e lidar com sua ansiedade social.

O Sr. Hildebrando, que, caturra, lamentava-se desarticuladamente, em provocado por Aeris, queixou-se forma expressa:

— Um tanto quanto mórbido, não?

A moça, agora com o macacão metalino purpurado pela luz, respondeu o senhor calmamente, com um sutil sorriso:

— Ahn, sim, o senhor está correto. Trabalhamos aqui exatamente com a ideia de morte e renascimento. Tudo alegórico, muito naturalmente. O primeiro estágio dentro da Associação, que é justamente esse no qual os senhores se encontram, inicia-se com uma espécie de rito no qual a pessoa é levada a lidar, tanto real quanto figuradamente, com aquilo que há de mais obscuro. O que os senhores encontrariam na escuridão mais profunda, no silêncio mais absoluto, na solidão plena? Estão prestes a descobrir.

— Ora, mas o que é isso, minha filha?

— Onde dá esse alçapão?

— Bem, como vocês poderão ver… — disse Aeris, adiantando-se e abrindo as pesadas portas da passagem subterrânea, o que fez com que um sopro tépido subisse rapidamente — temos aqui ótimos tanques de isolamento… Alguns os chamam de câmara de privação de sentidos, mas isso soa tão errado, tão, ahn… Punitivo. Nós tratamos pelo nome que os maiores entendedores usam, que é, como eu disse, tanque de isolamento. Ótimos. Ótimos e instalados em condições ideias. Ideais.

Os três desceram então por uma longa rampa, ligeiramente inclinada. O carpete no chão, extremamente felpudo, abafava todo o som produzido pelos passos. Os mesmos pequenos focos de luz púrpura junto ao chão iluminavam o caminho. Depois de fechar as grossas portas, que, assim como aquelas paredes, eram dotadas de isolamento acústico, Aeris tratou de explicar que o tanque de isolação é como uma grande banheira, totalmente fechada, na qual o sujeito flutua deitado e imóvel, suspenso por uma solução de água e sulfato de magnésio. Não há nenhuma luz, nenhum som e, graças à suspensão na solução salina, o tato e a própria sensação de peso são mitigados, ficando quase imperceptíveis.

— A ideia — prosseguiu Aeris, fazendo com as mãos um amplo círculo em volta do próprio rosto — é gerar um buraco negro psicofísico, uma queda livre psicológica, na qual as realidades internas podem ser exploradas de uma forma completamente nova e livre.

Ao final da rampa, encontraram um segundo par de portas e depois dele, um pequeno vestíbulo, também todo negro, ao fundo do qual se viam três portais cujas entradas eram bloqueadas apenas por cortinas de tiras de um tecido grosso. No canto havia um homem, com os característicos trajes vermelhos do quarto posto da Associação, sentado diante de um terminal no qual brilhavam pequenos caracteres verdes sobre uma tela escura.

— Aqui, queridos, por meio desses controles, monitoramos tanto a temperatura do ar dentro do tanque quanto a temperatura da solução salina, a densidade dessa solução, entre outros parâmetros que nos são caros quando usamos os tanques de isolamento… — explicou Aeris, sussurrando, após um breve aceno de mão para o homem diante dos aparelhos.

— É… Minha, cara nós vamos entrar nesses tanques de isolamento, é isso? — disse o Sr. Hildebrando visivelmente ressabiado, mas também sussurrando, respeitosamente.

— Sim, meu caro, para que vocês entrem aqui na Associação é necessário que passem por uma sessão curta, de uma hora apenas, dentro do tanque. Essa sessão tem uma função ritualística, iniciatória…

— É um batismo em solução salina, minha filha?

No que Aeris riu e seguiu explicando:

— É interessante a associação com o batismo, mas a água aqui tem uma função diferente. A sessão tem um duplo condão, o de funcionar como um preparativo para os trabalhos que vocês farão aqui, afastando-os das experiências mundanas, que já ficaram lá fora, e o de colocar os senhores diante do escuro, da ausência, da solidão…

— É… Mas, olha… Escuro, ausência, solidão? Não foi para isso que eu vim aqui, minha filha, ai, foi o contrário. O com-ple-to o-pos-to.

— Bem, Sr. Hildebrando, talvez o senhor precise esperar até o final da explicação para que possa formar um juízo de valor. Os materialistas, que confundem a alma com a mente e então a mente com o cérebro, defendem que estamos limitados pelos nossos sentidos, pelos sinais e estímulos conhecidos, de forma que quando estamos no tanque de isolamento, profundamente relaxados, os lugares e pessoas com os quais nos interagimos, que aparecem depois de algum tempo sem os estímulos aos quais normalmente são submetidos os nossos sentidos, são criações de nossa imaginação, como num sonho…

— Hmmm… — piscando em demasia.

— Para esses tipos, o tanque de isolamento é utilizado como ferramenta para o relaxamento e para meditação. Verdade seja dita, é realmente uma maravilhosa ferramenta para o relaxamento e para a meditação. Mas, por que subutilizar a ferramenta? Não nos enganemos, a experiência mostra que nossa mente é capaz de se conectar à fontes e sinais cuja a ciência contemporânea não é capaz de explicar. É possível obtermos informações mesmo quando isolados de todas as conhecidas fontes de estímulo. É possível a transferência de pensamentos com outros seres… Humanos e não humanos…

Palavras que fizeram logo o Sr. Hildebrando repetidamente balançar a cabeça para cima e para baixo em afirmação e se desculpar:

— É que todo esse escuro, isso de ser subterrâneo, esse ar meio abafado, a coisa de ficar fechado, selado mesmo, sabe? De início, assim, pareceu-me ruim…

— Os antigos gregos desciam até as profundezas da terra, adentrando cavernas em busca de conhecimentos místicos… Os alquimistas associam a primeira fase do seu trabalho a essa mesma ausência de luz, essa escuridão, um estado de confusão, de melancolia, de questionamentos, a partir do qual surgem respostas, surge um caminho… Aqueles que desejam progredir dentro das fileiras da Associação, ultrapassando o primeiro posto, dentre outros processos, passam por longas sessões diárias, por quarenta dias contínuos, até chegarem ao segundo posto. Vocês, meus caros, precisam apenas de uma sessão.

Acenando convidativamente, Aeris seguiu rumo a um dos três portais sem portas. O homem de vermelho, falando muito baixinho, assegurou que os tanques já estavam nas condições desejadas. A moça indicou a Pereira e Hildebrando o banheiro logo depois do portal, à direita, onde eles deveriam cuidar de suas necessidades e tomar uma ducha antes de entrarem no tanque. Deveriam ainda repetir a ducha ao final, para remover qualquer resquício da solução salina de seus corpos. A cortina no portal impediria que os usuários do tanque fossem vistos, mas, para a segurança dos mais pudendos, havia um roupão estrategicamente posicionado. Logo após a porta do banheiro, via-se o tanque de isolamento, que parecia com um caixão, só que branco, brilhante e com as quinas arredondadas. Um caixão desenhando por gente da Apple. Aeris o abriu, revelando a imensa simplicidade do seu interior: lá estavam o líquido no qual se boia e um botão de emergência, mais nada. Em seguida, feito uma aeromoça gesticulando expressivamente ao explicar o funcionamento das máscaras de oxigênio, tratou de demonstrar, ainda que na vertical, como durante a flutuação no tanque as mãos deveriam ficar juntas, com os dedos entrelaçados, atrás da cabeça, os cotovelos imersos na solução. Para aqueles com algum receio de dormir durante a flutuação, Aeris demonstrou como deveria ser usado um pequeno travesseiro de espuma. Em seguida, orientou os homens como deveriam, uma vez dentro do tanque, concentrarem-se em suas respirações, inspirando e expirando lentamente.

Finda as explicações, cada um seguiu para sua ducha e em seguida para o tanque. Pereira em silêncio e o Sr. Hidelbrando, por mais ansioso que estivesse de experimentar o tanque, maldizendo baixinho a necessidade de mais uma vez trocar de roupas.

Uma vez sozinho, Pereira tirou seus trajes negros desajeitadamente e se pôs debaixo da ducha. Ficou com a cabeça baixa e os ombros caídos, respirando lentamente e se aproveitando do frescor da água.

– Ah, Cármen, as coisas que eu faço por você… – disse para si, com um amplo sorriso.

Dispensando o roupão, seguiu nu até ao tanque de isolamento. O receptáculo lhe pareceu um enorme útero de plástico. O fato de a solução salina ser completamente inodora não lhe surpreendeu tanto quanto o forte empuxo, que sentiu assim que colocou os pés dentro do tanque e foi lentamente abaixando, deitando-se até boiar imediatamente, sem a necessidade de nenhuma técnica de natação. Boiando, lembrou-se daqueles pequenos insetos que deslizam sobre a água, suspensos na tensão superficial do líquido. É assim que eles se sentem? Não, que eles ficam indo de um lado para o outro, frenéticos. Passados alguns minutos na escuridão — uma escuridão amigável, por opcional —, Pereira se lembrou de quando era criança e, armando vários cobertores, lençóis e travesseiros, brincava de cabaninha, ou quando, na casa de sua avó, enterrava-se debaixo de todas as almofadas que ficavam esparramadas sobre o tapete da sala de TV, ou ainda, quando experimentava a ideia de ter desaparecido, de não existir, escondido no armário da dispensa. Essa sensação de estar fora do mundo, separado, isolado, preencheu sua imaginação até que a calmaria do tanque foi subitamente interrompida por gorgolejantes ruídos estomacais. O incômodo de não ter comido nada desde o café da manhã lhe assaltou, fazendo com que sua barriga ecoasse pela câmara como um monstro. Pereira seguiu a lição de Aeris e se concentrou em sua respiração, ainda maravilhado com a flutuação e com aquele escuro impenetrável, até que seus sucos, membranas e músculos gástricos se acalmassem. Tal exercício de atenção potencializou os efeitos do tanque de isolamento. Findo os borborismos, sentiu-se no exato centro de um infinito mar de nada, estático e extático, congelado no espaço e no tempo. Continuamente blindado contra as experiências organolépticas, com a privação dos sentidos se estendo até à própria razão, começava então sua breve viagem alucinogênica. O mar de nada se transformou em um absurdamente quieto mar, material e imenso, cinza, espelhando um céu de um cinza ligeiramente mais claro. O horizonte plano em todas direções, trezentos e sessenta graus. Abandonado em um mar pacato. Em uma noite afável.

O aspecto gris daquele oceano sonhando foi então se colorindo lentamente, a medida que um sol vermelho sangue despontava na direção para a qual apontavam os pés de Pereira, espalhando camadas aquareladas de rosa e laranja a seu redor. Sem que houvesse uma fonte discernível, Pereira começou a escutar um longínquo planger de guitarra, imediatamente acompanhado pela pertubação das águas. Com a intensidade do som da guitarra – turvo, texturizado– progressivamente aumentando, as águas se agitaram mais, com elevações e depressões cada vez mais marcadas. O sol recém-nascido, de forma completamente antinatural, deslizou rapidamente para o zênite daquele céu, revelando-se então como a fonte do distorcido som de guitarra. Pairando sobre as águas, agora exatamente acima da cabeça de Pereira, o vermelho daquela esfera se abriu, como feixes de cabelo descortinando uma face, de forma que o objeto celeste não era mais o astro rei, mas a cabeça de Cármen, cuja fisionomia Pereira acabara de conhecer no vídeo introdutório da Associação. Uma face absurdamente enorme. A face ciclópica mirou Pereira nos olhos e fez que ia dizer algo, o que induziu arrepios no moço. Como num sonho delicioso que acaba subitamente antes do clímax, toda experiência se findou num só instante, quando, com um sonoro clique a porta do tanque se abriu, antes que a fabulosa boca tivesse conseguido emitir qualquer som.

Embasbacado, com o coração acelerado, ele saiu atrapalhadamente da câmara, deixando um rastro de solução salina até o pequeno banheiro, onde se esfregou com vigor e rapidamente vestiu as vestes negras do primeiro grau da Associação, muito insatisfeito por não poder se confortar ali com a normalidade das próprias roupas. Teria sido realmente uma produção de sua imaginação ou, como queria Aeris, teria sido uma mensagem enviada pela própria Cármen, ou quiça, por uma inteligência não humana, preternatural? Ou, grande sacanice, seria o tanque uma caixa de Skinner para humanos, dotada de aparelhos que possibilitassem o envio de estímulos para quem estivesse lá dentro, supostamente isolado?

Adentrando o vestíbulo de outrora, Pereira tornou a encontrar Aeris e o Sr. Hildebrando, que estava em prantos. Pereira, desviando o olhar da face do velho, demorou a entender que chorava de alegria. O que ele viu?, perguntou-se em silêncio. Os borborigmos lhe atacaram mais uma vez. Buscou pelo mapa que era também cronograma e depois de conferi-lo, enquanto dobrava-o demoradamente em quatro partes, endereçou-se a Aeris:

— Minha cara, com licença, mas na sequência… É o almoço, correto?

10.

— Bem, eu preciso da atenção de vocês agora. — Com as mãos para trás e as pernas bem espaçadas, Aeris envergou uma postura militar — É muito importante que vocês assistam esse vídeo com o máximo de atenção, mesmo que o já tenham visto várias vezes antes. Prestem bem atenção. Nós aqui temos um propósito próprio, diferente daquele do mundo lá fora, do mundo que para nós é secular. Toda atividade dentro desses muros, dentro da Associação, é guiada por esse propósito. Quem aqui está deve agir em total consonância com esse propósito, seja ele um visitante em sua primeira estadia, movida talvez pela curiosidade, o que nós não repudiamos de forma nenhuma — o que foi dito com um sorriso protocolar para Pereira —, seja ele um visitante habitual, recebido por nós várias vezes antes, seja ele um residente, já com todos os aspectos da sua vida voltados para o nosso propósito. Isso tudo é para dizer que aqui nós temos uma série de regras, que devem ser observadas com muito cuidado. Muito do que é considerado normal pelo mundo lá fora aqui pode ser desaconselhado ou até mesmo não permitido. Prestem atenção às regras.

A moça apagou então as luzes da sala e deu início à projeção.

Surrupiado de algum documentário estrangeiro, surgiu diante dos espectadores, flutuando contra um fundo negro, uma grande nuvem de poeria, cheia de pedregulhos: representava o Cinturão de Kuiper. Logo veio Plutão, seguido dos demais planetas do Sistema Solar, representados numa escala de tamanho de e distância quase que arbitrária, até chegar à Terra. Nosso planeta foi se aproximando até que, com a câmera imaginária adentrando a atmosfera, nuvens esbranqueceram por completo a tela. As imagens tomadas do documentário foram então deixadas de lado, as nuvens desaparecera dando lugar a uma tomada aérea do domo de concreto e da vila, sendo possível vislumbrar por instantes a sombra do helicóptero utilizado na filmagem. A câmera posicionada no helicóptero ampliou a imagem do domo até o seu limite e então, em mais um corte um tanto quanto tosco, apareceu na tela não o domo, mas uma réplica de isopor. A câmera então foi descendo até o branco do domo de isopor preencher toda a tela. Numa rápida piscação, o branco acinzentado foi substituído pelo branco amarelado de uma porta a se descerrar, revelando então um longo corredor, onde estava ao fim; ladeada por duas longuíssimas estantes carregadas de livros e pequenas esculturas, uma mulher sentada. Pereira, mesmo só tendo a visto no desenho na capa do disco Quimeras, reconheceu imediatamente Cármen, ali atendendo por Mestre Intreza.

Ela tinha a testa ampla, como a de Poe ou Baudelaire; grandes olhos amendoados, de íris vivas e aliciantes; um nariz que descia perfeitamente linear até acabar numa pontinha triangular, carnuda e ligeiramente arrebitada; maçãs do rosto bem delineadas, mas não exatamente salientes; a boca magra, transmitindo um ar de estoicismo e intelectualidade e um queixo pequenino que combinava com o suave arredondado de seu maxilar. Essa face, singular e teatralmente empoada, figurava no exato centro da tela, hipnótica. A Mestra usava na cabeça um alto turbante cônico, de pano dourado, adornado com o desenho de joias azuis, verdes e vermelhas; sobre os ombros, um manto vermelho, ornamentado com padrões de ramos dourados; por debaixo do manto o que parecia ser uma espécie de quimono, azul-marinho e muito justo. Suas mãos seguravam, aberto sobre seu colo, um grosso tomo de páginas amareladas, com escritos em latim em grandes letras góticas. Aos seus pés jazia uma grande peça de marfim no formato de uma lua crescente, com as duas pontas voltadas para cima. Atrás da mulher estava estendido um véu, tremulando como se tocado por uma leve brisa, no qual se viam os desenhos de romãs seccionados, revelando assim seu interior carmesim, e pequenos sinos dourados. Por trás do véu, banhando toda a cena, emanava uma luz entre o verde e o azul.

A face da mulher se manteve impassível enquanto a câmera avançou por entre as estantes, nas quais, apesar de nenhum dos ali presentes ser capaz de identificar, podiam ser vistos bustos de filósofos, tais quais Pitágoras, Platão e Plotino, além de estatuetas representando, dentre outras, as divindades Ísis, Hera e Perséfone. A câmera enfim parou no ponto que a tela ficou preenchida quase que apenas pela imagem da mulher, com apenas as bordas das estantes, a da esquerda negra, a da direita branca, então aparentes. Pereira se retesou todo em excitação: apesar de toda aquela montagem, não pôde deixar de ver ali Cármen e apenas Cármen. Via-a como se em um clip, prestes a começar a cantar, talvez sacando um violão ou uma guitarra de trás do véu (seria melhor uma guitarra, pensava). O Sr. Hidelbrando e Flávia Cláudia a miraram com um temor reverencial enquanto Olímpia deu mais uma demonstração de o quão fleumática conseguia ser, apenas sorrindo.

— Seja bem-vindo à Associação Transcendental Amalantrah. Que os Mestres Ancestrais abençoem a sua senda — disse a Mestra, com uma voz grave, poderosa, que parecia brotar da própria terra, mesmo vinda das fraquíssimas caixas de som embutidas no laptop de Aeris. Concomitantemente, apareceu a sigla A.T.A. na tela, numa tipografia clássica, serifada, em azul-celeste.

— Você está prestes a entrar em um local consagrado à superação da condição humana — a Mestra disse assim que as iniciais desapareceram da tela — Todo aquele que adentra o nosso espaço o faz por livre e espontânea vontade e todo aquele que adentra o nosso espaço deve seguir à risca as nossas regras.

A imagem foi então se escurecendo, permanecendo a Mestra estática em seu trono, as mãos ainda por cima do livro de páginas oxidadas, até sua figura perder o contorno e desaparecer no negrume. Começaram a surgir então, na mesma tipografia da sigla de antes e no mesmo tom de azul-celeste, escritas sobre o fundo escuro, as normas do regulamento interno da Associação. Além de grafadas com luz, elas eram também lidas em voz alta pela Mestra, atrás, no escuro, com sua voz marcante. A cada item que aparecia na tela soava um pequeno gongo.

As regras eram as seguintes:

1. Foco. Uma vez dentro da Associação, até sua saída, deve-se permanecer, de mente e corpo, efetivamente dentro da Associação, voltando todas as suas atenções para as atividades aqui desenvolvidas. Salvo em casos excepcionais, autorizados diretamente pela Mestra, estão proibidas todas as formas de comunicação com o mundo exterior. Não é permitido o uso de telefones, computadores, aparelhos de rádio ou aparelhos eletrônicos de qualquer espécie.

2. Mente e corpo. Da mesma forma que sua atenção deve pousar somente sobre as atividades desenvolvidas na Associação, o sustento para seu corpo físico virá também, exclusivamente, da Associação. Existe uma dieta pré-determinada dentro da A.T.A., que deve ser seguida à risca. Não é permitido entrar nas instalações com qualquer tipo de comida, bebida ou substância, exceto medicamentos necessários à saúde do indivíduo, previamente informados na ficha de inscrição e autorizados diretamente pela Mestra.

3. Ordem. Todos os presentes dentro da Associação devem estar vestidos de acordo com o seu grau. Todos os visitantes e aspirantes deverão estar vestidos com as vestes negras do primeiro grau. Os de segundo grau deverão estar vestidos com as vestes brancas dos teóricos. Os de terceiro grau deverão estar vestido com as vestes amarelas dos práticos. Por fim, os de quinto grau deverão estar vestidos com as vestes rubras dos filósofos.

4. Propósito. Todas as atividades dentro da Associação devem seguir os roteiros pré-definidos para cada um pela própria Mestra, sendo necessária a autorização direta de um Adepto para qualquer exceção a essa regra.

Os dizeres desapareceram, a tela foi clareando, voltando a mostrar a Mestra que, levantando a mão direita espalmada, despediu-se dos telespectadores com uma invocação aos Mestres Ancestrais, permanecendo estática então, a cena toda se preenchendo de fumaça (gelo seco?) até ficar branca e, figuradamente, congelar. Os dizeres A.T.A. apareceram mais uma vez, em azul-celeste sobre o fundo branco.

Aeris ascendeu as luzes. De uma gaveta instalada debaixo da mesa tirou três grandes bolsas feitas de um plástico ao mesmo tempo grosso e transparente. Cada uma das bolsas tinha um adesivo, colocado de forma bem visível na sua frente, que exibia o nome de cada um dos ali recepcionados escritos em branco sobre um fundo preto.

— Bem, todos vocês já fizeram o depósito corretamente antes de chegar aqui, de forma que não temos de discutir valores. Inclusive, o valor depositado cobre todas as necessidades que terão, nesse intervalo vocês não terão de adquirir nada. Na verdade, durante esse intervalo vocês não poderão fazer nenhum tipo de negócio, de transação, todos os valores em espécie, cartões de crédito, cheques e semelhantes ficam comigo aqui.

Sr. Hidelbrando espremeu seus secos lábios, aproximou, com as duas mãos agarradas ao punho, a sua bengala contra o peito, fazendo lentamente não, não, não com a cabeça. Soltou um pigarro ctônico e em seguida sibilou nervosamente que aquilo era um absurdo sem igual. Aeris travou corpo e o olhou com os olhos acusatoriamente arregalados, como se absurdo, realmente, fosse fazer aquela consideração.

—Nós não expulsamos ninguém da Associação e também não convidamos ninguém. Se não convocamos, necessariamente, não forçamos a entrar. Todos que aqui adentram o fazem de acordo com suas vontades, o senhor escutou bem. A questão é binária, senhor. O senhor entra ou sai. Sim ou não. Se sim… Eu ficarei com esses bens aqui, que serão então depositados em nossos cofres. Tudo será documentado. E… Bem, o senhor sai quando bem entender… Se não… Bem… Então não.

Hidelbrando, pensando que não havia deslocado até ali para simplesmente voltar sem nada, anui, ainda que a contragosto:

— Olha, filha… Eu vou querer um recibo disso tudo — O que Aeris respondeu que podeira ser providenciado, aproximando-se do homem.

As bolsas por dentro se assemelhavam a pastas sanfonadas, com diferentes compartimentos. Na primeira parte Aeris colocou a carteira de Hidelbrando, com seus documentos e dinheiro. Passando então para a segunda parte da bolsa, recolheu então o celular do velho:

— Bem, como vocês viram no vídeo, todos os relógios, celulares, computadores e aparelhos eletrônicos de uma forma geral, como máquinas fotográficas, filmadoras, tablets, pagers e etc., devem ficar aqui

Recolhidos os pertences do Sr. Hidelbrando, que ficou sem recibo nenhum (nem ali, nem depois), ela se aproximou de Pereira. O moço, levando a mão à testa, tartamudo, tentou se manter na posse de suas ferramentas de trabalho:

— Mas, eu… Nós, ahn, combinamos… A matéria, é… Não… Não tem como eu fazer tudo de cabeça.

Aeris, no mesmo tom sério, rapidamente o acalmou:

— Bem, no seu caso, há uma autorização expressa de Mestra. Poderá ficar com suas anotações e seu gravador. Fotografias serão cedidas por nós. Terá também um computador ao seu dispor, mas sem acesso à internet. O contato com o mundo lá fora, e isso é válido para todos, está suspenso até a saída. Fazer qualquer contato implica em sair das nossas instalações… Para voltar, só passando mais uma vez por esse mesmo procedimento…

Flávia Cláudia, de tão solícita, só faltou tirar a bolsa transparente da mão de Aeris e colocar ela mesma os seus pertences dentro dos diferentes compartimentos. Aeris seguiu reforçando as restrições impostas pela Mestra:

— A alimentação se dará também de acordo com o determinado pela Mestra, respeitando, é claro, as restrições e condições de saúde de cada um, conforme informado no formulário de inscrição… Não só o conteúdo da alimentação, mas também as horas e os lugares são essenciais, de forma que não é também permitido aqui entrar com qualquer tipo de alimento, bebida ou substância… Não é permitido consumir nada fora do que é servido aqui, com exceção dos necessários remédios já informados no fichário de inscrição.

Mesmo diante de alocução tão redundante, Pereira tinha de perguntar. Fumar, um careta ou um do verde, era algo do qual ele não conseguia abrir mão. Tinha de, pelo menos, perguntar:

— Proibido fumar?

— Proibido fumar. Proibido álcool, açúcar, cafeína, qualquer droga, lícita ou ilícita — respondeu-lhe Aeris, com um claro olhar de reprovação que para Pereira, e somente para Pereira, tinha algo de decepção, como se a moça tivesse algum tipo de expectativa em relação a ele (ela não tinha).

Aeris retirou quatro embrulhos de debaixo de outra gaveta, também localizada de baixo da mesa circular:

— Além disso, há a questão do vestuário, as suas roupas também ficarão aqui comigo e serão devolvidas quando vocês partirem. A partir das informações constantes nos formulários, foram feitas vestes para cada um de vocês, nos tamanhos e modelos apropriados a seus corpos, com a cor correspondente à posição de cada um de vocês em nossa hierarquia… Aqui…. — ela disse entregando um dos embrulhos para o Sr. Hildebrando — Nigredo, o posto de entrada… Para o Sr. Hildebrando, ahn, acredito que M seja o tamanho, não é?

— Sim, minha filha.

— Aqui, Nigredo também para você, Daniel… Vocês podem se trocar ali, ali, ó, tem um vestiário, um instante só. E, aqui, Flávia Cláudia, Albedo… E aqui, Olímpia, a sua, Citrinitas…

— Ah, se pudesse eu já vinha com a minha na malinha, trazia de casa, mandava fazer…

— Olímpia, não, tem de ser a veste fornecida aqui, você sabe.

— Adorei o preto, mas… — caderninho no joelho, tentando aparentar um distanciamento profissional — Olha, essa pergunta é feita de maneira, assim, cem por cento honesta, tá bem? Eu… Eu não quero provocar… É… Tá certo, nós vamos usar essas roupas, beleza. Assim, é como eu disse, preto…. Eu não tenho uma cor favorita, sabe?, mas se eu tivesse, com certeza seria preto… É que… Porque todos nós temos de usar essas roupas aqui?, padronizadas, e você, que, ahn, também está aqui na Associação, assim, muito mais tempo do que a gente, né? Usa…

A moça levantou a mão como quem diz que já entendeu e aceitou a pergunta. Era uma questão que ela tinha prazer em explicar. A bem da verdade, tinha um enorme prazer em elucidar tudo relacionado à Associação e à Mestra.

— Ah, sim, é claro… Aqueles que visitam a Associação ocasionalmente tendem a permanecer no primeiro grau, vestindo-se de preto. A medida que a pessoa vai entendendo, não só racionalmente, mas também com o coração, sentindo também… A medida que os ensinamentos da Mestra são compreendidos e a frequência na Associação vai aumentando, a pessoa passa de grau. Depois do grau de filósofo, no qual se usam vestes vermelhas, vem o grau de Adepto. Para se chegar ao grau de Adepto é necessário passar por um… — Olhos revelando receio — Um ritual, um rito… Um rito no qual se descobre seu nome transcendental e suas vestes transcendentais, definitivas, utilizadas aqui e além…

— Além? — falso tom de surpresa.

— Tudo em seu tempo. Agora você deve se trocar.

Depois de anotar “graduação / formatura = parangolés” em seu bloco de notas, Pereira seguiu para o cômodo que servia de vestiário. Virado para a parede, de forma a não ver o nenhuma parte do corpo nu do Sr. Hildebrando, Pereira se trocou desajeitadamente. Descobriu que suas vestes consistiam em um par de calças largas, uma camisa de mangas compridas que se assemelhava a uma bata, um pequeno poncho, que ia quase até a cintura e um pequeno barrete. Além disso, havia também um bornal de pano. A capa e a pequena touca, ele foi informado por Aeris assim que retornou à sala anterior, eram de uso opcional (opção claramente desaconselhada pelo calor). Ligeiramente envergonhando, ele retirou essas duas peças, deixando-se então de se sentir como um duendezinho melancólico. Ficou sentando, as mãozinhas uma sobre a outra, as duas sobre os joelhos, olhando para Aeris com um sorriso tímido e sem graça até que os demais voltassem, quando a moça então entregou folhetos a todos.

Abrindo o seu folheto, Pereira descobriu um pequeno mapa da sede A.T.A. em preto em branco. Marcações em caneta vermelha indicava os caminhos, locais e horários que deveria seguir ali dentro. Ficou imaginando, maravilhado, se eram anotações feitas pelo próprio pulso de Cármen.

— Bem, é isso então, Olímpia e Flávia Cláudia, vocês duas estão liberadas, um carro deve estar chegando para levar vocês. — A mão direita fazendo um V com os dedos, apontando para dupla Hildebrando e Pereira — Os senhores, por favor, por aqui, uma iniciação é necessária.

9.

Olímpia, muito naturalmente, não passou batida. Como poderia? Quando lentamente abriu um sorriso para Pereira, com um muito leve erguer de sobrancelhas, enquanto Aeris tentava descobrir qual cabo funcionaria no projetor, o moço não pôde deixar de reparar nas maçãs agradavelmente proeminentes de seu rosto, acentuadas pela maquilagem dourada sutilmente aplicada e no suave castanho claro dos seus olhos, encimados por pálpebras coloridas com sombra verde de tons metálicos. Interpelá-la era um imperativo.

— E você, — Pereira então acertou, tratando-a por você, não escutando então que “Senhora está lá no céu”— o que te traz até aqui, até Car-, ahn, até a Mestra Intreza?

A socialite morena fechou os olhos por um momento, coisa muito rápida, e então fez um doce meneio de cabeça, em tom afirmativo, como se tivesse mentalmente repetido a pergunta de Pereira para si mesmo e prontamente encontrado a resposta:

— Beeem. Sabe aquela pessoa?… Que gosta mais da expectativa da festa, não sabem?, de pensar, preparar e coordenar tudo, tu-do, do que, assim, da própria festa? Então, beeem, meus caros, essa pessoa… — com uma jogadinha do tronco para a direita, abrindo as mãos lentamente, as palmas quase que votadas para cima, os cotovelos bem próximos à cintura marcada pela calça e jaqueta, sorrindo —Sou. Eu. E… Bem, festas sim, claro, que a festa é o — soltando um som agudo no á — ápice da civilização, claro, claro, mas não só festas, porque com frequência eu projeto e promovo eventos, eventos culturais, ou, como eu gosto de chamar… — gesticulando com os pulsos articulados de forma a expor, além de suas unhas pintadas de um verde também metálico, os seus vários e coloridos anéis — Realidades possíveis, ainda que… Improváveis e… Temporárias… Entendem?

Àquela altura, depois de relatos de visita extraterrestre e viagens extraplanares, ninguém demonstrou ter qualquer dificuldade com o conceito. Olímpia continuou, empostando a voz, ainda que levemente:

— E, além disso, eu sou uma grande, aha!, flâneuse, não sabem? Adoro borboletear, por aí, pelo mundo. Adoro. Mas, assim, não sabem?, o que me agrada não é essa coisa pré-definida, óbvia, chata, do turismo não. Ah, não, não. Sou uma viajante, não uma turista. Sabe? Totalmente diferente…

Ergueu, dramaticamente, apenas a sobrancelha direta:

— Uma coisa, assim, não sabem?… Distinta.

Sendo que a última palavra foi dita com uma súbita e desagradável contração da catadura que ela logo tratou de desfazer, revelando a enorme plasticidade de seu rosto, seguindo, mais uma vez sorrindo:

— Daí, uni essas duas coisas, esses dois traços meus, sabem?, e aqui, na Associação… — apontando um indicador para baixo — Aqui eu faço um trabalho com Intreza, com a Mestra… Desde… Desde de logo depois que nós duas nos conhecemos… Ai, queridos, que episódio… Ah, foi tão… Tão… Ai, fico, assim, sem palavras…

Olímpia inclinou-se para frente ligeiramente, piscando de forma jovial e como que dedilhando o ar:

— Ah, quase consigo escutar as harpas, não sabem?, como em um flashback de desenho animado. Haha! Foi em um lugar muito especial que nós nos conhecemos, não sabem?, nada mais, nada menos do que na frente da própria Esfinge de Gizé. Sim, ela mesma. Uma coisa assim… Incrível. Não vou dizer que foi, ahn, uma experiência mística, mas, ó!, — levando as mãos ao rosto (os antebraços comprimindo ligeiramente o busto), o queixo caído de maneira exagerada — foi quase, não sabem?, qua-se. Eu estava lá, embasbacada, cheia de… Cheia de maravilhamento e… E temor ao mesmo tempo. Ah, temor, sim. Não é à toa que a Grande Esfinge é chamada pelos falantes de árabe de o Pai do Terror… É sim, não sabiam?

O Sr. Hidelbrando coçou o seu papo bem barbeado (um feito realmente digno de nota, dado o conjunto de pelancas que era seu papo) com sincera perplexidade. Flávia Cláudia encantada com Olímpia, soltava, bem baixinho, consecutivos ós, enquanto, Pereira, indolentemente, rabiscava pirâmidezinhas em seu bloco de anotações.

— Eu fiquei assim, como que paralisada, como uma ratinha diante da cobra, duma, assim, duma naja, acreditam? E vi, assim, vi na minha imaginação, vi e não vi, vi num só relance… — Passando a mão aberta lentamente na frente do rosto, a palma voltada para os espectadores, os dedos bem espaçados, um tanto lânguida, quase como em um passo de dança — A Esfinge completa e… Colorida!… A face no corpo de leão, inteira, assim, de um vermelho terroso, com seu nariz e barba faraônica cerimonial ali, presentes, com aquela coroa listrada de dourado, ah, um dourado muito vivo, e daquele azul plural, intrincado, do lápis la-zú-li. Gente, nossa, muita emoção, não sabem? E tudo tão súbito. Um frisson, ai, muito forte, uma sensação, assim, celeste, me arrebatou e me deixou sem ar, sabem?, fiquei bamba… Toda solta.

— Mas e aí? — inquiriu Flávia, quase aflita, mãozinha mexendo nervosa sobre os joelhos.

— Então menina, atrás de mim, eu percebo, assim, na minha visão periférica, uma mulher, eu me viro e a vejo, ela está envolta num véu púrpura, nossos olhos se encontram e então ela me diz, assim: Encarar a Esfinge seriamente é encarar o transcendental ele mesmo, o arcano ele mesmo. O transcendental e o arcano, gente. Acho que na cabeça dela era até com maiúscula, em caixa alta . O Transcendental. O Arcano. Que surpresa, não é? E a medida que eu ia me recuperando, a Mestra, que eu então sabia então quem era, não fazia nem ideia, ia me dando o ombro enquanto nós seguíamos o caminho de volta, ela me contando coisas sobre a Esfinge que eu em absoluto não sabia. Contou, assim, vejam só, que não existem registros da construção da estátua. E que existem marcas de erosão por água em seu dorso, o que indicaria que ela teria sido construída em um tempo em que chovia muito ali, um tempo talvez anterior aos pró-prios egípcios… Ai, meus queridos…

Olímpia silenciou-se brevemente, como que se dando tempo para os presentes considerarem essas informações, ainda que jogadas assim, um tanto desconexas. Olhava para o centro da mesa branca, perdida:

— E daí, a partir daquele momento, daquele instante em que ela me ofereceu o ombro, seguimos juntas, foi Karnak, os templos de Ramsés e Nefertari, o Vale dos Reis, o Monte Sinai, enfim, o Egito ele todo juntas…

— Ai, que privilégio! — Flávia Cláudia, de boca cheia, numa expressão que era ao mesmo tempo uma sincera manifestação de seu juízo de valor acerca daquela viagem com Mestra Intreza e uma verdadeira suma de toda a vida de Olímpia, que, feliz com tal recepção, continuou:

— E no meio nossa recém-iniciada convivência, muito agradável, agradabilíssima, foram surgindo, assim, naturalmente, inúmeros roteiros para vários passeios, à guisa, inicialmente, de mera especulação, não sabem? E se fossemos a Angkor, no Camboja? E se fossemos a Kyoto? E se fossemos ver a aurora boreal na Finlândia? Daí Intreza, digo, a nossa Mestra, me convidou para a Associação e para, dentro da Associação, ser eu a pessoa encarregada do planejamento, organização e acompanhamento das viagens internacionais… Viagens que eu programo para emular, não sabem?, o mesmo espanto, o mesmo maravilhamento que tive diante da Esfinge, naquela vez…

Olívia olhou demoradamente para cada um, piscando como se sonolenta e envolvendo-os com um sorriso sugestivo:

— Viagens vivenciais, experimentais…

E então quase séria, cerimoniosa:

— E isso é, nada mais, nada menos do que uma maneira de celebrar a vida, não é? Ah, ver as expressões de encantamento na face das pessoas… Como é, assim, gratificante…

— Aí, imagino, estar facilitando, né, esses encontros, apresentando as maravilhas do mundo, ai, gente, que tudo… — Flávia, tiete.

— E, não sabem?, deu certo, é um projeto de, assim, muito sucesso. Começamos por aqui perto, na nossa América Latina mesmo. Fizemos expedições para Machu Picchu, para a Ilha de Páscoa, para o deserto de Guajira, para o Deserto de Sal… Depois começamos a fazer roteiros em Portugal. O Caminho de São Tiago de Compostela, Fátima, a Quinta da Regaleira… Ano passado fizemos Lourdes, na França e Assis, na Itália…

— Olha só, eu não me considero, assim, um beato, mas, olha, eu bem que gostaria de sim… Lourdes e Assis? Ah, vejam, sim… — Hidelbrando murmurando em concordância.

— Mas, assim, gente, é…. Ai, querida, como que?… — Flávia: atônita — como qu’eu faço? Assim, para participar, ai, ir com vocês…

— Ah, sim… Essas viagens, você pode ver que nenhuma delas é divulgada no site, elas são somente para um grupo, assim, mais próximo, não sabe?

Eis que expressão de abandono, completo abandono no rosto de Flávia condoeu Olímpia:

— Mas, ó, querida, presta atenção aqui, eu te aviso. Ai, queridos, aviso todos você, tá?, com certeza, aviso todos da nossa próxima viagem. Vocês são todos, ai, sem dúvida, distintos. Mas, não vai ser esse ano, sabem? Esse ano, vai acontecer…

Aeris, visivelmente preocupada, mirou Olímpia nos olhos. Olímpia tentou não alterar o fluxo da sua fala, continuando, sem esboçar qualquer resposta direta a Aeris:

— É, bem… Esse ano faríamos toda a Londres ocultista, culminando com uma visita noturna a Stonehenge . Ai, queridos, seria tão, mas tão lindo, iríamos começar na Catedral de São Paulo, não só por conta propriamente de São Paulo, não que eu tenha nada contra Paulo de Tarso, é claro que não gente; e nem só porque no exato lugar da catedral existia, muitos anos antes, ai, incontáveis anos, um importantíssimo templo consagrado a Diana, uma das deusas mais importantes do panteão romano e, ao mesmo tempo, uma das divindades mais influentes no ocultismo. Não só por isso queridos; e ainda, não só porque é um ponto elevado de Londres, uma colina, não é?, e eu imagino que vocês bem saibam que os lugares elevados têm um valor especial para as forças místicas; mas porque estaríamos então em Ludgate Hill, o local onde está enterrado o Rei Lud, o monarca gaélico, descendente do próprio deus celta Nodens, fundador de Londres. Não sabem?, o próprio nome Londres vem dele, vem do latim Londinum que por sua vez vem de Caer Ludein, a fortaleza de Lud.

A socialite abriu os braços com as mãos espalmadas, como quem, um pintor, um fotógrafo, busca um enquadramento ideal, e, com, os olhos vidrados, piscando excessivamente, sugeria uma cegueira para o que tinha diante dos olhos que lhe permitiria enxergar terras distantes, tudo uma evidente brincadeira:

— Haveria, muito naturalmente, uma visita às igrejas barrocas de Hawksmoor, o arquiteto. Ah, não sabem?, são cheias de curiosos elementos pagãos, suas posições no mapa de Londres formam o que? Nada menos do que um pentagrama, não sabem? A Minha preferida é a St. George, no Bloomsburry, nossa, o que é aquilo, gente, não é mesmo? A torre, uma referência explícita ao Mausoléu de Halicarnasso, e, ai, gente, e Bloomsburry, não é mesmo?, ali do lado, ó, temos algumas das estátuas que antes figuravam no Mausoléu Halicarnasso no Museu Britânico… Ah, e é claro, ao Museu Britânico seria dedicado pelo menos um dia inteiro, é claro, não é? De antigos feitiços sumérios escritos em cuneiforme ao espelho negro clarividente de Dr. John Dee, é coisa demais para ver, para sentir… Tem de tomar até cuidado, não sabem?, porque podem ser muitos os arroubos, ah, sim…

— É… — Aeris, entre grave e sem jeito — Olímpia…

— O que mais não poderia faltar? Ah! A rua na qual Blake morou por quase duas décadas?, a casa onde Madame Blavatsky explanava sua doutrina, pessoalmente, toda terça-feira? Ai, ai…

— Bem, tudo pronto aqui, prezados — Aeris, as mãos na cintura, dirigindo-se, verbalmente, a todos, mas olhando especificamente para Olímpia, que anuiu em encerrar sua fala, pulando para o final:

— Mas, enfim, queridos, tudo isso para acabar em uma visita a Stonehenge, sim. Mas, ó, meus lindos, vocês não sabem, não sabem não, a dificuldade que é fazer uma visita digna ao monumento que é Stonehenge, as ovelhas, aquelas ovelhas, com números em azul pintados nas laterais de seus corpos nem são o pior, algumas acabam sendo até agradáveis, mas espirituosas do que muita gente que eu conheci por aí… A questão é aquela maldita estrada, cinza, barulhenta, ai, banal, banal, dolorosamente banal, ali do lado, impedindo a fruição do monumento, belíssimo, belíssimo… Eu, na qualidade, ai, meus lindos, qualidade singular de curadora de momentos especiais, curadora de, assim de epifanias, poderia eu apresentar Stonehenge assim, desfigurada assim? De jeito nenhum, não é mesmo? E por isso então que eu consegui uma coisa, assim, super difícil, não sabem?, super. Uma visita ao monumento à noite. É fantástico, meus lindos, fantástico — Olivia então suspirou, catando os olhos de Aeris — Mas… Bem, as atividades desse ano parece que, bem, serão interrompidas…

8.

— Mas, olha, olha que fantástico. Isso que o senhor está falando tem tudo, tudo mesmo, tudo a ver com questão do controle do padrão vibratório, que é, assim, uma técnica muito, muito importante pra gente da projeção astral — disse a moça da bata bege.

— Ah, é mesmo, minha filha?

Pereira não conseguiu acompanhar imediatamente a continuação da conversa, ainda cativado por aquilo que acabara de escutar. Ficara aterrorizado com a descrição da feminina criatura alienígena, imaginando-a como um híbrido de mulher e taruíra, um ser de pele fina, fria e pegajosa (como também pareciam frias e pegajosas as mãos do velho). Além disso, compadecia-se com o Sr. Hidelbrando, com a sua dificuldade de conseguir o que Pereira resolveria, várias vezes maquinalmente, com quinze minutos no banheiro, entregue a uma memória ou, mais frequentemente, fantasia libidinosa.

A dor do velho funcionava ainda como lembrança de que Pereira, caso chegasse a tal idade (tendo o velho algo entre setenta e oitenta anos, estando até muito conservado, aparentemente independente da ajuda dos outros para conduzir sua vida), também teria de lidar com esse e mais problemas, muito provavelmente sem a intervenção de seres vindos do espaço.

Olhando para o senhor, tetando não sentir dó, seguindo aquela máxima popular de que o dó é o pior sentimento, Pereira, que não levou a sério nem uma só palavra do relato, desejou imensamente que aquilo fosse verdade, verdade pelo menos para o velho, e que Cármen, ali Mestra Intreza, tivesse alguma forma, a forma que fosse, de ajudá-lo.

Dada a sua repentina loquacidade, pareceu então que era agora a vez da moça de bata bege de expor os seus motivos para estar ali, no que seria esse vestíbulo da Associação Transcendental Amalantrah. Com a musculatura do ombro e pescoço visivelmente retesada, inquieta em sua cadeira, piscando em excesso e descerrando um amplo sorriso, ela lembrava uma apresentadora de programa infantil cocainômana:

— Assim, né?, a projeção é uma das técnicas, talvez a principal técnica que eu uso no meu ofício de — inclinando a cabeça levemente para trás e arregalando os olhos, olhos já com branco demais — life coach. O senhor sabe, vocês sabem, o que é um life coach?, o que é coaching?

— Ah… — no que o velho tomou a palavra com um gemido desarticulado, levantando debilmente o dedo indicador ao ar, um gesto perdido entre a criança que anuncia à professora que tem uma contribuição à aula e um sábio salientando a importância de sua lição — seria, seria, ahn, um… Técnico para a vida?

— É, exatamente, um técnico, um treinador, né? Um treinador para a vida, exatamente. E ele vai estar o que? Ele vai estar apoiando, assim, proativamente, ele vai estar apoiando o cliente, né?, que é o coachee, né? —e então a moça fez um minúsculo intervalo e sorriu, como às vezes sorriem os professores ao discorrer, achando graça de um detalhe ou minúscula reviravolta que para os demais não poderia ser mais desinteressante — ele vai estar apoiando o coachee a — contando os verbos nos dedos da mão direita — descobrir, criar e sustentar… O que?

Hildebrando produziu som amorfo com o fundo da garganta. A socialite morena disse “Diga-me você, querida”, só com o mover dos cílios. Pereira ainda pensando no gozo de origem alienígena do Sr Hildebrando, ignorou a pergunta.

— O que ele mais quer, gente! O que ele, o cliente, né?, mais quer e, assim, mais deseja, deseja profundamente para a sua vida. Assim, o life coach obtém várias informações, né? Pesquisa meeesmo os, assim, valores e crenças do cliente, né? Para estar conseguindo isso. Gente, é difícil, tá? Porque às vezes as pessoas não sabem o que querem. É sério, muita gente não sabe o que quer. Uma coisa é você querer ter um carro assim, assado, né? Mas o que eu quero, assim, da minha vida? Como eu vou desenvolver, como eu vou, assim, investir, investir em mim mesmo, né, empreender, fazer de mim esse empreendimento, se eu mesmo não sei o que eu quero? O life coach também vai estar atuando aí, ajudando a pessoa a des-co-brir o seu sonho… E aí, é um processo, né, gente?, uma caminhada mesmo, partindo de onde a pessoa está até onde ela quer estar, até esse estado desejado. E quem não quer, né?, estar dando esse salto?, quem não sente essa distância, entre o que somos e o que queremos ser…

— Dever ser… — disse Hildebrando, solenemente.

— Ah! Claro Sr. Hidelbrando, viver a vida ao máximo é uma obrigação que devemos ter conosco, é mesmo, estarmos conseguindo usufruir do má-xi-mo da vida, sim, é um compromisso. É sim um dever ser. E para isso as pessoas precisam… E se não realmente precisam, podem sim se valer muito de alguém que as dê, profissionalmente, profissionalmente, né, gente?, uma — pisca, pisca — orientação positiva para a vida. Para deixar, ó, deixar, jogar fora, deixar de lado, dizer, isso não me pertence, jogar fora todas as neuroses. É, sim. Deixar de ser medíocre, neurótico, disfuncional. Sabe?, sabe?, é a ação no mundo! A preparação para a ação no mundo! Com esse — soquinho na mão espalmada —, com esse objetivo final. O êxtase. Contínuo.

E então a ela fez uma pequena pausa dramática, olhando todos os ali presentes com uma carinha de falsa condescendência.

— Isso mesmo. Êxtase. Contínuo. O êxtase contínuo de se viver de forma plena. Ple-na. Ser na vida um ás. Um ás, sabe? Não ser bom, não ser muito bom, não ser excelente, mas ser um ás.

Ela esperou por expressões e interjeições de admiração. Simplesmente não vieram. Não porque aquela pequena apresentação não funcionasse, funcionava, ou, pelo menos, funcionava na maior parte das vezes: ela de fato vivia disso. A questão era que o Sr. Hidelbrando, um etarista militante, a considerava nova demais para orientar qualquer pessoa acerca de qualquer coisa; Pereira ainda estava meditabundo, pensando em impotência e punhetinhas cerebrais espaciais, enquanto Olímpia, ainda que escondesse, por dentro virava os olhos para qualquer exaltação ao esforço, ao exercício ou à meritocracia, atribuindo tudo o que é essencial à pessoa a uma questão de, essencialmente, berço. Berço que ela tinha e a moça não.

O Sr. Hidelbrando, entretanto, ainda que até ali não tinhas e impressionado, deu continuidade à conversa, porque, em razão de sua solidão contínua, esse era mais ou menos o seu procedimento padrão, interpelar a maior parte das pessoas em seu caminho e tentar arrastar ao máximo até a mais insossa das conversas. Além disso, como tratava-se de algo novo para ele, com um nome em inglês, maiores informações eram necessárias, até mesmo para talvez refutar a coisa toda:

— Tem escola disso, faculdade disso?

A moça da bata bege apertou os lábios brevemente, mas com força o suficiente para que por um instante eles ficassem esbranquiçados, e então falou:

— Então… Eu fiz vários, vários, cursos, sabe? Eu, assim, sou sedenta, sedenta, por conhecimento, ai, minha atividade mental é, ó, — estalando os dedos com as duas mãos — frenética, frenética, então, assim, eu fiz vários cursos… E, assim, eu estou o tempo todo, o tempo todo não, é exagero, claro, mas, eu faço, ó, muitos retiros. Esse ano eu já fiz três retiros. Já se foram mais de seis mil reais, só em retiros. Agora estou no quarto e… Ainda vou fazer um no final do ano também né, gente? Claro. Cla-ro.

— Cursos… — murmurou o velho.

— E assim, muita leitura! — passando as páginas de um enorme tomo imaginário — Nossa, só de autoajuda… Só de autoajuda, hein? Eu li duzentos. Duzentos. Aí, somando com biografias, livros, assim, do lado mais espiritual, né? Dá duzentos e cinquenta. Assim, ler muito é um hábito meu, eu tenho o hábito da leitura. Mas eu sou muito séria, para mim o que importa é o pragmatismo, eu não perco meu tempo não, nunca leio nada, na-da mesmo de, assim, ficção, romance, essas coisas. Eu não quero nada com esses personagens e coisas que nunca aconteceram. Sério. O meu foco é o conhecimento, o conhecimento legítimo… Esses livros, eu construí essa bibliografia conversando com especialistas em várias áreas, experts mesmo, milionários, gente com ph.D, líderes espirituais, líderes empresariais, muita gente da indústria, sabe? Isso porque, assim, eu trabalho com muitos executivos, sabe?, gente de várias, várias, multinacionais… Eu tenho facilidade em lidar com essas pessoas…. Eu tenho isso em mim, sabe?, isso de me conectar com as pessoas, e também isso, de um senso, assim, pra negócios, sabe? E é essa questão do… Estilo de vida, né? Eu trabalho no final é com isso, né?, como vocês disseram, estilo de vida. Eu tenho de liderar, fazer a parte de marketing e — quase gritando no e — entregar os resultados. Assim, liderar pelo pelo exemplo. Aí, assim, eu tenho facilidade… Empatia. Ah, sim, a parte do marketing, assim, do negócio mesmo, nossa é muito difícil, né? Tem que estar o tempo todo… — aponta com os indicadores para um laudo e depois para o outro — Né?

— Mas, a… Projeção… — a interpelou o Sr. Hidelbrando.

— Ah, claro, né gente? A projeção astral. Assim, não existe isso de ser um life coach genérico, né? Por isso eu me especializei nessa questão, assim, da espiritualidade…. E, assim, convenhamos também que a própria espiritualidade, colocada assim, ai, é também uma coisa muito… Muito aberta… É necessária a especialização dentro da especialização, gente. Aí, quando eu conheci a viagem astral, a projeção astral, eu disse… É, tá aí! Esse vai ser o meu nicho.

A graça da moça de bata bege foi então revelada. O nome Flávia Cláudia Buffone brilhava em letras metalizadas no cartão que ela entregou aos presentes. Ao ler, debaixo do nome da mulher, Coach & Projecionista Astral, Pereira começou a se atentar à conversa, permanecendo calado só mesmo porque Hildebrando manifestara a mesma dúvida que lhe acometia:

— Mas… Ahn… Como a senhó- Como você chegou à Projeção Astral? Como se… Como se aprende isso?

— Hoje em dia… Olha, é uma coisa, assim que eu tenho de falar para as pessoas. A projeção astral não é coisa assim, de super-herói, tá?, coisa, ai, de gente dro-ga-da… Hoje em dia existem vários cursos de viagem, de projeção astral, vários livros, DVDs e também, ó, muitos, muitos centros esotéricos trabalhando… Com a viagem astral. Como… Como esse aqui né, gente?

E então Flávia Cláudia levantou os braços e olhou em volta de si de forma artificial e exagerada, apelando para a presença de todos ali, na Associação Transcendental Amalantrah, como um sério indicador que a conversa dela era, afinal, séria. Antes que qualquer consideração pudesse ser feita, retomou:

— Mas, então, gente, o que é a projeção, ou a viagem, astral?

Mas uma pausa dramática, como se um vídeo estivesse sendo gravado e ela fosse inserir, na edição, uma vinheta (música eletrônica misturada com um canto monótono, flautas e tambores) com umletreiro chamativo naquele intervalo. O seu pequeno público ficou sem entender a demora, mas, como se alguém por detrás de uma câmera digital amadora dissesse “Vai, Flávia!”, Flávia foi:

— Então, gente, a viajem astral, não é nada mais do que o ato de estar conseguindo sair, com o seu corpo energético, do seu corpo físico, só que com consciência, gente, com to-tal, total lucidez! E, assim, uma vez que você sai, pode estar fazendo as suas viagens, ou, assim, qualquer atividade, sabe, nesse sentido… Estar se desdobrando do próprio corpo… E, gente, não me olhem assim, tá?, porque, assim, sério, gente, todas as pessoas, todas as pessoas se projetam, assim, inconscientemente e sem o controle, sem a lucidez, do projecionista treinado, sabe? Não é assim, uma coisa para pessoas especiais, tá? É uma coisa, é uma habilidade para quem quiser, para quem tiver o com-pro-me-ti-men-to necessário. E, aí vocês perguntam, pra que eu vou tá fazendo a viagem astral, porque eu vou tá projetando, assim, o meu corpo astral, o meu corpo energético, minha alma? Gente, tem infinitas razões, tá?, infinitos porquês. Imagina, essa possibilidade, gente, que possibilidade!, de se desvincilhar — entrelaçando dos dedos das mãos e então os abrindo lentamente, como se fossem pétalas — ai, de se libertar do corpo físico? Você pode tá visitando seus guais, tá?, seus mentores, você pode tá descobrindo, fazendo uma verdadeira arqueologia pessoal e espiritual, descobrindo coisas muito importantes acerca das suas vidas passadas, e até mesmo alguma coisa sobre a sua missão de vida agora, a missão da sua alma, o que é superinteressante, né?, você pode ainda tá ajudando, assim, no astral, espíritos necessitados, tá?, desencarnados, que precisam de um trabalho, precisam de uma luz ali, né?, você pode tá inclusive viajando, viajando no espaço e no tempo, né?, visitando lugares e fazendo, assim, pesquisas, né?, por exemplo, ai, gente, estudar, imagina?, estudar o Zoroastrismo lá na Pérsia da Antiguidade, conhecer os próprios magi, gente, ai, imagina…

Ao que Sr. Hidelbrando começou a ficar agitado, passando a mão por sobre o lábio superior, alisando o ausente bigode; Pereira anotou “superpoderes” em seu caderninho, fazendo raios infantiloides saindo em volta do escrito, e Olímpia se ateve a, muito lentamente, descruzar e cruzar as pernas, com a mesma naturalidade de um dormente que, ainda bem longe da vigila, troca o ombro sobre o qual dorme.

— Gente, é o instrumento mais poderoso de conhecimento, de crescimento, gente. O mais poderoso, tá? Olha só, gente. Vamos pensar. O nosso corpo físico, pesado, denso, precisa de muitos cuidados, precisa de comida, e isso, gente, é superimportante também, a gente tem de pensar muito, muito mesmo na nossa dieta, e sono, gente, tá, é essencial dormirmos… Mas, ó, é o corpo físico que precisa desses cuidados… Vocês acham que o nosso corpo energético precisa disso, precisa de dormir? Não, gente, claro que não. E então, que tal estar aproveitando essas seis, sete, oito horas de sono para algo mais? Você pode usar essas horas, projetando sua consciência, para tá aprendendo, para fazer algo realmente, algo prático, útil na sua vida, tá? É difícil, né?, eu não consigo fazer, assim, tuuudo o que eu quero quando estou acordada, ai, é também um jeito de usar melhor, de tá administrando o seu tempo… Né?

— Mas você, Flávia, já conseguiu isso, viajar no tempo, como é? — Perguntou Pereira, por um instante sinceramente tentando entender a questão.

— Mas, é um desafio gente, eu disse que não é para pessoas especiais, mas assim, em termos, tá?, é pra gente que é guerreira, guerreira. Quem faz projeção astral é guerreiro, tem de ser guerreiro demais, para conseguir dominar a técnica, tá?, tá conseguindo se projetar quando você quiser, onde você estiver, né?, conseguir, assim, tá direcionando a sua viajem, né?, conseguir tá mantendo a sua consciência, a sua lucidez, né? É difícil atingir, assim, um grau satisfatório dessa técnica… Sabe, conseguir chegar a e manter o mindset necessário e, e depois, seguir naquele flow, sabe?

Ao que Pereira ergueu a mão, como se quisesse repetir a pergunta não respondida, sendo, porém, interrompido por Hidelbrando:

— Também quero fazer uma pergunta!, é… É… E… E no espaço, você pode fazer uma viagem astral no espaço sideral?

— Ass-

— E! E… E o que você disse, é…. Esse negócio de… Padrão vibratório?

— Então, gente… Vamos lá, né? Uma coisa de cada vez, né? Ó, sim, a resposta para a primeira pergunta é sim, já consegui, mas foi só uma vez, e, assim, foi muito rápido, muito rápido mesmo. Eu fiz minha projeção, né?, eu tava então me projetando, tá?, e aí, gente, eu me vi, assim, andando na rua, em Paris, que assim, é um lugar que eu conheço, né?, que eu conheço Paris, tá?, mas assim gente, olha só, não era a Paris que eu conhecia, tudo parecia assim mais, ai, gente, vintage?, e eis gente, que eu tô Paris ocupada pelos alemães na Segunda Guerra, e assim — estala os dedos — assim que eu percebi onde estava, eu perdi o controle da minha projeção, da minha consciência e, gente — jogando a cabeça para trás e virando os olhos artificialmente —, gente, num instante eu estava de volta aqui, sabe?

— Como num sonho? — Pereira perguntou ao mesmo tempo que fingia fazer anotações em sua caderneta, sem levantar os olhos, mas projetando um pouco a voz, um artifício que ele julgava lhe emprestar um ar profissional, o tipo de coisa que usava com guitarristas falastrões semi-desconhecidos.

— Sim, um sonho lúcido — subindo tom no , fazendo biquinho — sabe? Um sonho no qual tudo aparece assim, em alta definição, e você está consciente…

— Ah, então…. — Pereira olhou para moça, erguendo uma sobrancelha — então o sonho lúcido é a viagem astral?

— Assim, no meu entendimento, assim, sim, por isso que…

O Sr. Hidelbrando limpou a garganta ruidosamente e disse, estridentemente:

— E no espaço?

— Então, é possível estar sim viajando, pelo astral, no espaço, senhor… É muito difícil, porque a gente precisa conhecer o lugar. Ter alguma relação, alguma coisa que, assim, te ligue ao lugar facilita tudo, mas, com muita prática, é sim possível, senhor, estar fazenda uma viagem, assim, no espaço.

Ao que o Sr. Hidelbrando ficou olhando para Flávia Cláudia abobalhado. Ela prosseguiu:

— E, bem, é… A questão do padrão vibratório, é a energia que vai fazer com que os seres do astral te enxerguem ou não, eles se comunicam de acordo com a sintonia. Se você estiver em baixa frequência vibratória, você vai atrair espíritos baixos, mas, numa frequência vibratória, assim, elevada… No caso do senhor, né?, o senhor estava lá no seu jardinzinho, que deve ser um lugar de muito cuidado do senhor, de muita energia, depois de um dia de vários afazeres, né, de trabalho, e assim, o senhor estava pronto para de deitar, né?, aberto assim para experiências sutis, né?, e assim, o senhor estava lendo, a leitura, a leitura é também uma viagem, né, um ato, assim, mágico, né?, e aí o senhor pode ter elevado o padrão vibratório do senhor, assim, chamando essa criatura…

— Você, você acha ela veio pelo astral?

— Pode sim ter vindo, uma criatura de outro planeta que se projeta no astral, né?, assim, existem várias. Pode muito bem ter sido.

Sr. Hidelbrando, num estado de total maravilhamento, continuou olhando para Flávia Cláudia, agora quase como se ela fosse uma parenta, algo como sobrinha-neta querida.

Pereira, maravilhado por sua vez com a facilidade com a qual os dois, em pouco tempo, encontrara um terreno em comum dentro de suas experiências paranormais, rabiscou “dialetos diferentes da mesma língua” em seu caderninho e, virando a página, mais uma vez de olhos abaixados, perguntou:

— E, ahn, Flávia, você está aqui na Associação para…

— Para fazer um trabalho, né?, de blindagem do corpo astral, assim, blindagem do corpo energético com Mestra Intreza, para que me proteger, né?, nas minhas projeções pelo astral.

— Mas… Assim… Eu não vi isso listado no site

— O que aparece no site é só aquilo oferecido ao público geral, não iniciado…

Aeris, em seu paço soldadesco, reapareceu na sala com uma pasta de couro mole, castanha e bastante surrada, da qual retirou uma duzia de cabos. Antes de começar a testá-los, olhou para os três e, encontrando-os aparentemente relaxados e talvez até mesmo entretidos, sorriu, parecendo então um pouco menos apressada:

— Ah, olha só, que bom, vocês estão se dando bem…

7.

Apesar da proteção fornecida pelo teto do carrinho de golf e pela pigmentação escura da íris do moço, a luz do início da tarde fazia com que Pereira mantivesse impressa em sua face uma leve careta.
Mirava os arbustos e as pequenas árvores contorcidas do cerrado, crescendo logo depois dos estreitos canteiros às margens da estradinha asfaltada, onde, semeadas e irrigadas artificialmente, plantas de folhagem mais vistosa desafiavam a secura do sertão.
À frente, aproximavam-se lentamente os prédios da Associação Transcendental Amalantrah, evocando, com seus desenhos arredondados, um cenário de filme de qualquer de ficção científica, daqueles ruins, no qual o futuro aparece datado. O muro antes visto na entrada se estendia agora abraçando todo o amplo perímetro da vila. Em seu caderninho apoiado sobre o joelho, tremendo ligeiramente, Pereira rabiscou cifrões, pensando o então óbvio: esse povo é rico.
Por ser acostumado a viver nas áreas centrais de cidades sujas, o ar limpo, ainda que seco e quente, agradava-lhe especialmente, como lhe agradava também o perfume cítrico da motorista, moça que, por seu nariz adunco, coluna aprumada e corpo delgado, tinha algo de ornitoídeo. Mas nada galináceo, sendo a galinha bicho variando entre o abobado e o subitamente nervoso; ela uma ave esperta, calma e rápida. De rapina. A jovem conduzia para a primeira construção depois do portão, referida por ela mesma como Câmara de Descompressão, enquanto discorria institucionalmente:
— A Associação foi fundada em 88. Inicialmente funcionava em uma chácara lá em Minas, na cidade de São Thomé das Letras. Essa chácara ainda existe, mas não é mais a sede, é agora uma de nossas várias unidades espalhadas pelo país. Uma de nossas filiais. Em 95 foi adquirido esse espaço, que, além de várias vezes maior, é energeticamente mais potente do que a chácara. O domo foi a primeira construção, servindo para todas as nossas atividades, até que, graças aos Mestres Ancestrais, — expressão que ela usou com a maior naturalidade — fomos crescendo, com mais associados optando por uma experiência mais…. Mais intensa e mais recompensadora… Até que em 2000 começarmos a construção da vila, para darmos conta de abrigar todos. São quase noventa casas… Ahn, exatamente 92 com as três que ainda estão em construção, ali ó.
A moça tirou rapidamente a mão do volante e apontou para a esquerda. Pereira fez breves anotações, das quais, além dos cifrões, só os números apareciam mais ou menos legíveis. A jovem, depois de uma disfarçada olhadela no caderno do jornalista, continuou:
— Uma grande parte do investimento vem de Mestra Intreza ela mesma, que nunca mediu esforços, sejam eles recursos materiais, sejam suas próprias energias, vitais e psíquicas, para passar adiante os ensinamentos que os Mestres Ancestrais lhe transmitem. Fora isso, existem as contribuições de todos que participam de nossas atividades. Como você, sua revista, por exemplo. É um investimento duplo, você investe em você, em seu crescimento e aprendizagem, e em nós, nesse nosso coletivo. Já os… Os mais avançados nos estudos, que já residem aqui e estão mais preparados, investiram aqui tudo o que tinham, por uma questão muito lógica: a vida deles é aqui. Aqui, e quando for a hora, além. Mas antes, necessariamente, aqui.
— Você é uma dessas pessoas? — disse Pereira, tomando notas, a cabeça abaixada.
Ao que Aeris — e esse era o nome usado pela moça dentro da Associação, um nome de personagem de videogame, que Pereira bem sabia, mas preferiu não questionar, nem mesmo comentar, simplesmente repetindo, Aeris, quando ela se apresentou ao moço instantes antes, quando abriu o portão — disse, desembaraçada:
— Sim, eu vim para cá em 2010, com a minha mãe. É… Minha mãe conheceu a Mestra no início dos anos noventa. Nós sempre participamos de várias atividades. Várias. Eu desde criança. Aí, em 2010, quando ficou evidente para nós que algo, algo enorme, estava prestes a acontecer e que… Que seria necessário estarmos preparadas, viemos para cá…
— E deixaram tudo para trás?
— Sim… Deixaram para trás, mas… Eu não diria que era tudo. Deixamos para trás uma vida sem significado.
— Ahn… E o que… O que está prestes acontecer?
— Você é privilegiado Daniel, muito privilegiado — e então a moça, com um ar solene, tirou os olhos da via, que seguia mesmo reta, desacidentada e vazia, e disse, olhando nos olhos de Pereira — A Mestra não só aceitou que você fizesse essa visita e produzisse o seu texto tratando da Associação. Ela também quer tratar pessoalmente com você….
Fala que causou em Pereira uma curiosa sensação de esperança, ainda que indefinida e arrepiada.
Aeris prosseguiu:
— Ainda hoje você vai ter a oportunidade de falar com Mestra Intreza, depois da sua primeira aula. Ela mesma lhe explicará todas essas coisas…
— …
— Mas… Eu tenho umas explicações mais gerais, vamos só encontrar os outros na Câmara… Para eu não ter de me repetir muito. Fazemos tudo de uma só vez.
Depois de estacionar o carro em uma pequena marginal próxima à construção cilíndrica de teto em forma de abóboda, a dita Câmara de Descompressão, Aeris, com seu passo preciso, caminhou em direção da grande porta de ferro da casa, marcado por um curioso padrão ocre ferruginoso.
A moça, com seu macacão prateado (como se fosse uma intrépida geóloga prestes a se aproximar de um vulcão em plena erupção), veste que quebrava a luz chapada do início da tarde em vários acesos poliedros de cores intercambiantes; o grande portão metálico e a construção minimalista, erigida em uma paisagem que, dependendo do enquadramento, parecia-se com um deserto; compuseram um quadro que, por instantes, breves instantes, teve algo de extraordinário.
Imagem que se sustentou até Aeris abrir a porta, revelando um cômodo de piso de ardósia verde escura encerada, mobiliado com uma mesa circular e meia dúzia de cadeiras de plástico. Em volta dessa mesa, três pessoas conversavam.
Logo depois de entrar, seguida de perto por Pereira, ela anunciou o jornalista:
— Pronto, gente, esse é o último. É o Daniel Pereira, que veio nos visitar em nome da revista Palco.
Apresentação que Pereira, um pouco atrapalhado pela súbita mudança na iluminação — as janelas estavam com as cortinas fechadas, uma lampadazinha débil servia como a única fonte de luz — e imediatamente irritado com o odor avinagrado vindo do ar-condicionado dali, completou com um oi muito tímido.
— Por favor, sente-se — disse a moça.
Quase na beirada da mesa, havia um projetor ligado a um laptop. Aeris sentou-se diante do computador enquanto Pereira tomou assento do outro lado da mesa, junto com os que ali já estavam: um velho e duas mulheres, uma na casa dos trinta, outra de talvez cinquenta anos.
O senhor falava enquanto as mulheres o escutavam atentamente. Todo rosto nos parece ter uma expressão que lhe é mais natural do que as outras. Mesmo impassível, toda face, pelo seu próprio desenho, sugere-nos uma careta que, por sua vez, sugere um estado de espírito. Fulano tem cara de irritado, beltrana de preguiçosa, sicrano de arrogante. O velho tinha em seu rosto uma permanente caretinha de nojo mal contido — os olhos semicerrados, as abas das narinas levemente erguidas —, como se, surpreendido por algo desagradável, quiçá escatológico, tivesse de manter as aparências. Seu cabelo, todo eriçado, era de um branco amarelado. A pele ainda lisa de suas rosadas bochechas barbeadas contrastava imensamente com as rugas que se cercavam sua boca e olhos e emanavam acima de suas sobrancelhas. Seus dentes eram de um amarelo claro, salpicado de pontinhos pretos nos incisivos inferiores, o que combinava feiamente com o tom acinzentado de suas gengivas amplamente expostas. Suas mãos, pousadas sobre o punho de uma bengala de alumínio de quatro pontas, reluziam sutilmente, sugerindo-se frias, úmidas. Além uma camisa social toda amassada, o velho vestia calças e jaqueta de treino negras, de material sintético, lembrando a um Fidel Castro glabro.
— É… Ahn… Muitos, não é mesmo?, muitos diriam que a, ahn, a própria forma da figura, a sua própria forma, ahn, antropomóooorfica, não é mesmo?, seria um graaande obstáculo para a ve-ro, verossimilhança de meu relato… — os olhos acompanhando os movimentos de Pereira ao se sentar, tentando em vão arreganhar a boca em um sorriso convidativo — Mas não há nada de verdadeiramente, ahn, literalmente in-crí-vel nessa minha, ahn, nesse meu relato… Porque essa forma — erguendo as mãos, a bengala sobre um dos joelhos — essa nossa forma de cinco pontas, essa forma de estrela, ela não é uma forma completamente alea… Aleatória, um fruto qualquer de um processo seletivo qualquer, ahn, de seleção natural…
— Design inteligente — murmurou a mulher mais nova, uma moça de cabelos castanhos presos em um coque, trajando uma longa bata indiana bege. Tinha um pouco de branco demais nos olhos e, inclinada para frente, as mãos espalmadas juntas diante do rosto, quase que como se rezando, mantinha um ar pretensamente reverencial que não conseguia esconder sua, talvez permanente, ansiedade.
O velho piscou demoradamente e então disse, num gemido agudo e anasalado:
— Não…
Buscou o punho da bengala e, levantando levemente os ombros, retomou sua fala:
— A própria… Não, sem nada necessariamente inteligente… A própria seleção natural, ahn, gera formas… Formas que se repetem… Existem formas que são funcionais, que, portanto, se repetem… Diferentes organismos, seguindo diferentes caminhos evolutivos… Por necessidade… Pela, ahn, interação do seres com a matéria… Chega-se a soluções semelhantes… Ahn, pensemos, ahn, nas formas… No corpo de um tubarão, que é um peixe; no corpo de um golfinho, que é um cetáceo e, assim como as baleias, também um mamífero e, ehn, pensemos no corpo de um iqui-ti-o-saaau-ro, ahn, ictiosauro, que foi um réptil marinho, um réptil… — e então, demoradamente, o velho, com o indicador (os olhos espremidos seguindo o movimento do dedo em riste), começou a desenhar no ar a silhueta passara a descrever — Comecemos pela cauda, com aquela nadadeira aberta assim, ampla, ahn, depois o corpo, espichado, não é?, mais grosso no meio, as barbatanas, não nos esqueçamos das barbatanas, o ros-, é, o focinho pontudo, assim afunilado…
As duas mulheres observavam atentamente a explicação do senhor. Pereira o escutava e o observava, mas às vezes olhava de relance para Aeris que, entre muxoxos e murmúrios, tentava fazer o projetor funcionar, checando ora a extremidade do cabo ligado à entrada do próprio projetor, ora a extremidade do cabo conectada ao computador. Concentrado em sua fala, o senhor continuou:
— Então temos— contando os dedos da mão esquerda com a direita, a bengala apoiada na beirada da mesa — peixe, réptil, mamífero — mostrando três dedos erguidos — três seres distintos, internamente muito diferentes, mas apresentando, ainda que su-per-fi-ci-al-men-te, o meeesmo desenho, a meeeesma forma. Ahn, evolução… É… Evolução convergente… Esse é o nome que a ciência dá, evolução convergente… Então… Vejam, é perfeitamente possível. Então não há nada de estranho, nada de inverossímil na forma do ser que me visitou, por ser ele um extraterrestre hominídeo… Essa forma, essa forma nossa, por sua utilidade, sua funcionalidade, pode muito bem se repetir… Essa forma de estrela, torso membros e cabeça… Estrela, microcosmo, pensem… É uma forma muito apta a se desenvolver por aí… Se repetir por aí, nos imeeensos abismos sideraaais…
O senhor virou-se lentamente para Pereira, atentando-se para o fato de que o jovem não estava lá quando ele começara o assunto.
— Fui visitado, sabe? Contatado… — segurando a bengala com as duas mãos e a erguendo lentamente para junto do peito — Um nível muito, muuuito profundo de contato.
Pereira tentou manter o semblante o mais sério possível. Aeris disse saindo do cômodo a passadas largas:
— Esse projetor não presta. Ou… Não sei…
Antes de encostar a porta pela qual entrara com Pereira instantes antes, avisou, quase gritando:
— Volto já, dez minutos. Vocês não terão de esperar mais, só mais um pouco.
Todos anuíram quase que automaticamente, por interessados na narrativa do senhor, que prosseguiu, enquanto de lá de fora veio o som do motor do carrinho de golf dando partida:
— Eu estava, como que agora, não sabem?, normal, bem sóbrio… Estava lá em minha casa, preparando-me mentalmente para ir dormir, lendo um pouco… Estava lá, na minha cadeira de vime no jardim, sabem? Todo sossegado já, o dia já corrido, passado, tudo feito. É engraçado… Porque será, hein? Haha. Nas estórias as aparições fan-tás-ti-cas sempre se dão assim, não é mesmo? São preeeceeediiidas desses episódios tão esquecíveis, comezinhos… Quem me, ahn, visitou não foi um animal, ah… Agourento, a me lembrar de um amor já impossível, mas… Como no poema, não é mesmo? Não foi um corvo, a memória de águas passadas… Ou, primaveras, ai, primaveras semi-esquecidas… Não. Mas.. Algo novo… Uma personagem…
O velho parou subitamente, mirando Pereira com o caderninho sobre o joelho:
— Algum problema se eu tomar notas? — disse o jornalista, meio acanhado.
— Não, de forma alguma, esse relato é de fato importante, eu não posso, ahn, não posso escondê-lo, não posso ser pudico com algo de tamanha magnituuude, por mais que, por mais que, diretamente, eu me exponha… Mas, sabe, eu já… Vocês vão ver, é triste, mas é só uma questão de tempo até vocês verem por si mesmos… Eu já me expus tanto nessa vida… Ahn, esperem que vocês verão… Exames, todos os tipos de exames, ser velho, muitas vezes, é ter o corpo entregue aos médicos… Sr. Hidelbrando, o senhor poderia? E aí vêm todo tipo de pedido, tudo quanto é situação, e então, por qual razão?, pra quê?, pra quê ser pudico agora? Pode sim tomar notas, meu jovem… É…
— Muito obrigado…
— É, revista, a moça disse agorinha, revista?…
— Palco… — respondeu Pereira coçando nervosamente seu cavanhaquezinho macio, — É uma revista que trata de… Artes. E… Mas, é… Não só artes, sabe? Artes e estilo de vida.
— Estilo de vida. Unhum. — disse a mulher que até então ficara calada, fazendo em seguida um beicinho que era como um carimbo a validar a sua breve fala, que embora curta revelara um relâmpago de dentes branquíssimos em contraste com seu bronzeado cinematográfico.
Sentada na extremidade da cadeira, com as duas mãos pousadas placidamente sobre os joelhos, com a coluna ereta e ombros erguidos, ela arqueava uma casaca de hipismo estilizada, de veludo azul-marinho, que casava com os seus culotes brancos justíssimos e com as suas botas de montaria marrons, perfeitamente lustradas. Sua face, um tanto felina, — toda natural, exceto pelas duas covinhas cavadas meticulosamente por um cirurgião plástico que chegara a assinar um termo prometendo nunca revelar tal intervenção — era emoldurada por um corte de cabelo à la Louise Brooks. Lançava breves olhares a Pereira, na expectativa de que o jornalista a reconhecesse. Pereira, alheio ao mundo das colunas sociais, não identificou, entretanto, Olímpia Magalhães Errenteria, que além de socialite, fazia também sua parte na formação no excesso de contingente de advogados, jornalistas, escritores e DJs do país, clamando para si tais mundanos epítetos com certa frequência.
A fala da mulher acalmou Pereira, que acenou com a cabeça concordando, fechando os olhos de forma veemente: ele não queria ser desmascarado, não queria ser visto ali como quem era: o rock journalist chatinho, o esnobe das bandinhas desconhecidas. Era alguém que escreve sobre o quê? Perfeitamente, estilo de vida.
— Palco? Vocês tratam de ópera também? — Hidelbrando desconcentrou-se por instantes.
— Olha, não… Mas é… É uma possibilidade.
— Ah, olha só, eu sou um diletante, quase um leigo… Mas, sabe, já escrevi algumas coisinhas, depois posso lhe mostrar… Mas, sim, estilo de vida — os braços esticados, as mãos erguidas abaixo, diante de si, a esquerda sobre a direita, a direita pousada sobre o cabo da bengala, a cabeça ligeiramente inclinada para o lado — faz sentido, poder-se-iiia falar siiim em um estilo de vida mais propício a aceitar esse tipo de fenômeno, e é claro, indo além, também um estilo de vida novo, que se desenvolve a partir da fruição do fenômeno, do… Do contato.
Pereira rabiscou um pequeno disco voador, escreveu displicentemente em baixo “Contato imediato? Qual grau?”.
Tentando manter um semblante profissional, empunhando a caneta, mirou os olhos do velho, como quem diz, estou pronto:
— Sim…
— Mas, bem, onde eu?… Sim, ah, sim… Estava eu então no meu quintal, não é?, preparaaando-me para em instantes ir dormir, entreeegar-me aos braços de Mooor-feu, não é?, quando acooon-te-ceu. Sim. Tudo começou com uma súbita luz, dourada, que me banhou todo, até me trespassou, eu diria, surgindo acima de mim, sem som nenhum, odor nenhum, nada, só essa luz. Não digo que me paralisou, mas foi quase, foi quase… No que veio a luz fiquei incapaz de me mover normalmente. Era… Era como se o ar tivesse se transformado em um meio muito mais denso, como se ca-da mo-vi-men-to fosse muito mais difícil, mais arrastado, do que o normal… Assim, limitado, olhei para cima, para de onde vinha a luz… Eis que do alto, no meio mesmo da luz, havia um ponto negro, um objeto, que de início era só um pontinho, só um pontiiinho que leeentameeente foi crescendo, tomando forma, desceeendo… — o velho então voltou a deixar a bengala de alumínio cair sobre os joelhos e olhou para o alto, para o teto do cômodo, como se de fato pudesse divisar ali a luz e o corpo que por ela descia — E daí vi uma silhueta, negra contra a luz, silhueta na forma da qual falava antes… Uma forma humanoide, com cabeça, torso e membros… Não caia, entendem? Não acelerava. Essa figura vinha em minha direção, abaixava-se numa velocidade constante, leeenta… Como se a descessem amarrada a uma corda… Corda invisível… E nisso o tempo se estendeu, não sabem? Eu não poderia dizer com certeza o quão demorado foi isso… É tão incrível, não é? Quando essas coisas espetaculares acontecem a nossa reação não é nada parecida com aquela que imaginamos que teríamos… Ah, eu tenho todo tipo de equipamento lá em casa, eu sou um sujeito up to date… Eu tenho câmeras ótimas, equipamento de primeira mesmo, sabem? Mas não gravei nada, não é mesmo? Nada além do que ficou aqui… — apontando para a cabeça — Não só aqui, na verdade…
Ficou por instantes com os olhos fechados. Por um momento a sua distintiva careta se desfez e foi visto em seu rosto um raro sorriso, como se tivesse sido contemplado com uma graça fugaz.
— E então, pela luz, ungida pela luz dourada, de ponta a cabeça, a cabeça dela vindo como que de encontro a minha, os braços esticados gentilmente em minha direção, veio descendo a cria-tu-ra, ah, nua, nua, alienígena, mas hominídea, antropomórfica, feminina, feminina, sabem? De silhueta, contorno, feminino, compreendem? Um corpo, assim, esguio, mas não es-quá-li-do, sabem? Mas, pequeno, pequeno, eu diria… Quando se aproximou mais, eu pude ver… Um metro e quarenta… Careca, careca mesmo, sem quaisquer pelos, a pele lisa, quase translúcida, várias veias assim reveladas, visíveis, sombras dos ossos debaixo da carne, manchas escuras indicando os órgãos… A cabeça, tão bela, tão altiva, graaande, ovalada…
A mulher da bata bege se empinou toda e arregalou os olhos em espanto, a socialite bronzeada sorriu tranquilamente, como se aquilo tudo fosse a coisa mais natural do mundo, enquanto Pereira se conteve para não soltar um muito modulado e sonoro:
— Nuuuooooossa —, restringindo-se a rabiscar em seu caderninho: quinto grau.
Os olhos — prosseguiu o velho — e aqueles olhos, amendoados e enormes, enormes, muito negros, todos negros, todos pupila, estáticos, completamente estáticos… Ah, quando eu vi a-que-les ooolhos… Era como se, sem nenhuma, nenhuma palavra, num silêncio… Um silêncio que só não era silêncio porque havia um leve zumbindo, sabem? Um si-bi-lo contínuuuooo, extremamente agradável… Um zuuumbido divino. Exceto por isso, silêncio, silêncio. Não existiam palavras. Neeem em miiinha mente… Acho que nem em minha mente se formaram então palavras. E nesse silêncio, aqueles olhos…
Levantou as mãos para cima, espalmadas, os polegares próximos de si, separados pelas minúsculas narinas do alienígena, os mindinhos apontando para cima, as mãos assim marcando onde estariam os descomunais olhos do ser sidérico. O cabo de sua bengala, solto, foi então de encontro à beira da mesa, golpeou-a de levinho e deslizou para a direita, não caindo o instrumento porque ficou encostado na perna do velho, feito um falo falso, metálico, erguendo-se na diagonal:
—Aqueles olhos se comunicaram comigo, conheceram-me, realmente conheceram-me, perguntaram-me coisas, coisas que eu respondi com o maior prazer, a, ahn, com a maiooor entrega, tudo por meio de imagens, sim, apenas imagens, imagens que eu ia revisitando, abrindo em minha memória e transmitindo àqueles olhos… Momentos de minha vida que ia buscando, reconstruindo, embalando de prazer… Como se meu prazer fosse uma grande folha de papel dourado que eu pudesse cortar e com ela embalar essas imagens, esses instantâneos que com um pouquinho de força, quase que força nenhuma, quase que só uma confirmação de que sim, aquilo era pra aquela criatura miraculosa, aquilo era o que ela queria, eram as respostas para as perguntas não formuladas dela… E ela também, por sua vez, compreendem?, enviou-me mensagens por meio de imagens… Abismos siderais, um comboio de naves errando por céus distantes, céus frios, céus desolados, as astronaves transportando seres de uma existência em parte orgânica, como nós, e em parte sintética, como já estamos também nos tornando… Seeeres mais antigooos do que nós, mas, parecidos, in-cri-vel-meeen-te, parecidos, não é mesmo? Foi só aí, realmente, que ficou evidente para mim a natureza realmente alienígena de minha visitante, compreendem?… Até então, mesmo eu sendo um homem prático, técnico, afeito às ciências, até então eu considerava seriamente minha visitante como, ahn, diii-viii-na… Mas, por meio daquele delicioso cinema mudo telepático ela me revelou ser um ser, apesar de sideral, profano, suscetível aos sortilégios da mooorte, assim como nós… Da morte… E do amor.
— Que incrível… — a moça da bata bege.
— O mais incrível, na rea-li-da-de veio depois, depois desse nosso, ahn, digo jooocosamente, mas com muito respeito… — olhos fechados, levando a mão em pinça ao início do nariz, no meio dos olhos, onde se apoiariam os óculos — Depois desse nosso primeiro contato, no qual nós nos conhecemos muito, muito mais rápido do que se conhecem os… Os jovens, éhn, de agora, na eeera da infooormação, não é mesmo? Foi exatamente depois dessa nossa primeira conversa que se deu o mais digno de nota, o que pode nos espantar, abiiismar verdadeiramente, mas, que, li-te-ral-men-te — dedinho indicador em riste — literalmente nada tem de in-crí-vel…
— Claaaro… — mais uma vez, a moça de bata bege, agora passando a mão esquerda pela testa nervosamente. A mulher morena continuou com um sorriso de catálogo de imagens e Pereira sublinhou duas vezes o escrito quinto grau, na expectativa do clímax do causo.
O homem então inclinou a cabeça para baixo, lentamente, como se fosse colocar a testa contra a mesa.
Voltando a erguer a vista, olhando para o teto, com os braços como que se tentando mover acima de si um pesado cobertor, o velho continuou, agora às vezes esganiçando num falsete estranhíssimo:
— E então veio, veio sim, ah, veio. Ó, aqueles dedos alongados, ó, se prolongando, o que era aquilo?, ó, ela veio, se aproximando de mim, os dedos, alooongados, me tocaram, tocaram o topo, o próooprio topo da minha cabeça, e aí, ó!, algo, eu não digo sobrenatural, mas, ó, algo fantástico, ó, fantástico, ainda que tecnologicamente fantástico, aconteceu, é!, o topo da minha cabeça se efervesceu por completo, efervesceu, e era como se estivesse lá, em uma brasa prazerosa, e como se então também não estivesse, como em sono, mas também um sono de gozo; imagino que aquela criatura celeste, ai, estelar, estivesse vibrando em frequências, frequências especiais, sutilíssimas, por meio das quais ela podia, não, dois corpos não podem permanecer no mesmo espaço ao mesmo tempo, claro, mas ela podia, vibrando, vibrado, efervescer, tomar meu couro cabeludo e então, ó, ir tocando, sem me ferir, sem tirar nada do lugar, ir descendo, tocando meu crânio, trespassando pacificamente meu crânio, ó, afundando aqueles prooolooongados dedos — enquanto agora esfregava os próprios dedos e se mexia na cadeira — ó, aqueles dedos então afundando, ai, no meu cérebro, dois dedos, dois dedos feito uma pinça, uma pinça assim aberta, um compasso, ai, o compasso do Criador, ai, que blasfêmia, e vão afundando aqueles dois dedos, afundando sensualmente, vibrando, até tocarem minhas amidilas ce-re-be-looo-sas, ai, causando em mim, ai, como eu diria?, aaah…
Tapando o rosto com as mãos espalmadas, a voz ao mesmo tempo empostada e embargada:
— O céu de azul aceso num lampejo, tropel vitorioso a festejar, abismo de vertigens mil a enflorar, translúcido ardor do amor que almejo, uma dança com um demônio benfazejo, nasce o sol do céu e mar a encontrar, são fogos e champanhas a espocar, enfim beijo o bom anjo do desejo, o frêmito incrível, deuses líquidos, e o súbito cessar de todos os ruídos, que morno me descobre tão lânguido… No rol dos, oh!, felizes incluído, agora, nada límpido, mas plácido, profano, sou… Em carne revivido!
Ao que as mãos do velho desceram, revelando seu lábio inferior trêmulo e seus olhos marejados. Levantou-se apenas o suficiente para conseguir retirar um lenço do bolso de trás da calça e, fungando muito, prosseguiu:
— Ai, vão dizer aí que homem não chora, não é mesmo? Mas… Vocês me dão essa licença, poé-
— Não, não, mas é claro, o senhor tem de…— não conclui a moça da bata bege.
— Ô, meu caro… — Pereira, vacilante— O senhor tem mesmo de…
— Muita emoção. É muita emoção, gente— disse Olímpia com sinceridade.
— Ai, sim, emoção demais. Imaginem? Ai, esquentei-me mesmo. Dando até um breve circulaçãozinha lá embaixo, onde eu já ando há muito, ahn, desfalecido mesmo…. E no que foi tirando eu fui tremendo todo, sentindo aquela efervescência diminuindo, ai, aquela coisa fantástica.
Sorriu mais uma vez. Antes que alguém fizesse que ia falar, retornando à caretinha usual, quase gemendo:
— Mas… Da mesma forma repentina como veio até a mim, ela… Ela se foi… Não é mesmo? Ficando um abismo imenso entre nós dois — os olhos baixados, a vista deslizando pelo chão — Nunca mais fui contatado, com nada… Uma… Uma imagem… Sequer… E, bem, ai, por isso, por isso cá estou, não sabem? Acredito que aqui, aqui vou conseguir entender como… Como fazer contato, poder, sentir…. Sentir mais uma vez.